quinta-feira, 28 de junho de 2007

Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano



Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano é o título de um livro maravilhoso cujos autores são Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller. O primeiro, o biólogo chileno que, juntamente com Francisco Varella, conribuiu para modificar conceitos sobre a conexão corpo, mundo e conhecimento. Ela, psicóloga alemã, membro do Centro Bávaro de Pesquisa Educacional do Instituto Estatal para a Educação na Primeira Infância e fundadora do Instituto de Pesquisa de Ecopsicologia da Primeira Infância de Passau, na Bavária.

Na Introdução, os autores defendem a idéia de que a linguagem surgiu, na história da espécie humana, entrelaçada com o emocionar. Mais do que linguagem como representação, eles abordam a conversação: uma "convivência consensual em coordenações de ações e emoções". Partem do pressuposto de que a emoção é que define a ação. Assim, Maturana e Verden-Zöller tomam o ato valorativo como algo que precede a dimensão do necessário. O desejo, portanto, desempenha em nós, papel fundamental. Não dá para pensar uma realidade que se imponha sem o intercurso desejante. E não é o que o brincar faz o tempo todo?

A obra divide-se em três grandes capítulos: Conversações matrísticas e patriarcais, por Humerto Maturana, O brincar na relação materno-infantil (fundamentos biológicos da consciência de si mesmo e da consciência social), por Gerda Verden-Zoller, O brincar: caminho desenhado, por Gerda e Maturana. E por fim, o epílogo e um glossário.

A obra é um alento diante da predominância, na eduação infantil, de projetos extração cognitivista, na qual o lúdico tem desempenhado o papel de mero suporte para a aquisição de competências como ler, escrever e contar.

O livro discute as relações entre o amar e o brincar, trabalhando as linhas que caracterizam as culturas patriarcais e matriarcais, considerando-se a dominação histórica das primeiras sobre as outras. A corporeidade, na perspectiva do brincar e do emocionar, assume sua importância não só para a educação infantil mas também para uma ecologia humana.

Certa vez, convidado a discutir com educadores um projeto de educação infantil que envolvia a introdução de conhecimentos de modo interdisciplinar, porém, com grande carga intelectual, procurei ponderar sobre a necessidade de deixar as crianças pequenas brincarem mais, adiando a formalização para mais adiante. Uma das coordenadoras do encontro chamou-me num canto e disse: - Vi o seu sofrimento quando a tendência é sobrecarregar a criança pequena de estudos, deixando quase nenhum espaço para que ela brinque! De fato, era isso mesmo. A influência cognitivista trouxe para a primeira infância toda uma carga de cientificismo que não deixa de ser, também, um saber dominante. Não se trata, entretanto, de avogar o irracionalismo, que é, na verdade, o complemento do racionalismo. Porém, há saberes que não são considerados valores fundamentais para uma sociedade como a nossa.

Em muitos projetos de educação infantil há uma desconfiança, por vezes sutil, em relação à vida do corpo em sua agitação molecular. Na perspectiva de Maturana e Verden-Zöller, pouco espaços para os momentos em que pode se dar o entrelaçamento da linguagem com o emocionar. Por decorrência, o brincar só pode ter um lugar secundário: é sempre instrumento para outra coisa. Alguns desses projetos para a primeira infância querem, de um jeito ou de outro, formar pequenos intelectuais críticos e esquecem que, primeiramente, somos corpo.

Nesse aspecto, cito o interessante texto de Maria Isabel Brandão de Souza Mendes e Teresinha Petrúcia da Nóbrega, intitulado Corpo, Natureza e Cultura: contribuições para a educação. As autoras abordam, principalmente, as idéias de Maturana, Varella e Merleau-Ponty sobre o conhecimento, o corpo e o mundo. Defendem a primazia do corpo sobre os conceitos de representação (mental, principalemente). Trata-se de um corpo-ação, pois
"considera-se que na própria ação já há cognição, tendo em vista que a aprendizagem emerge do corpo a partir das suas relações com o entorno. Essa concepção de aprendizagem problematiza, portanto, a concepção intelectualista pautada nos pressupostos racionalistas da modernidade, a qual concebe o corpo e os sentidos como instrumentos no processo de conhecimento, ou então como responsáveis por enganos, por erros, sendo então descartados ou considerados acessórios no processo de construção do conhecimento."

A recuperação do corpo que brinca nos projetos educacionais pode ser reivindicada, principalmente, quando temos em vista a primeira infância. O livro de Maturana e Verden-Zöller potencializa essa perspectiva, na qual a gestualidade e toda a gama de vivência corporal são reconhecidas como modos de conhecimento válidos por si mesmos. Diria que são outras ciências - outras modalidades de saber. A convivência do diferente, a aceitação da diversidade no mundo atual, a retomada da corporeidade, tais são os temas que se colocam, portanto, em pauta.

Referências:
MATURANA, Humberto R. e VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotii e Lia Diskin. São Paulo, Palas Atenas, 2004.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

O brincar e a educação infantil - I

A postagem é uma versão resumida de uma conferência realizada em Outubro de 2005, para a rede de educação infantil da Prefeitura da Cidade do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco.


Imagem: Kandinsky

Por que o brincar?

O desafio colocado é pensar a função do brincar na educação infantil quando os conteúdos escolares, a preocupação com a aquisição de conhecimentos com bases científicas ou mesmo definida pela importância central do domínio da linguagem escrita, pressionam no sentido contrário.

A educação estaria na linha direta de formação para um conhecimento que constitui o repertório e a capacidade de renovação da técnica humana, capaz de transformar a matéria e produzir riqueza. Entretanto, muitas são as técnicas. E uma técnica é um modo de entrar no mundo, de habitá-lo. O brincar, nesse sentido, constitui uma tekné (do grego): ao seu modo, ao seu jeito, cabendo a nós compreendê-lo operativamente como um modo de buscar um saber sensível exploratório. Mais ainda: a tekné do brincar é uma invenção das crianças de todo o mundo. Mesmo que tenham que lidar sempre com um mundo construído e regulado pela cultura dos machos adultos, as crianças do mundo reivindicam para si, seja às escondidas, seja às expensas dos programas e compromissos já delineados, a tekné que é uma entrada singular no mundo. Singular porque é uma coisa de criança. E qual é essa tekné (essa coisa de criança)? Ela é um modo de dar sentido à vida antes que os sentidos prontos se imponham sobre ela.

Esse modo de habitar o mundo é uma tekné que o brincar aciona. E se o brincar nos ensina isso, essa técnica de entrar no mundo, que é outro modo de dizer conhecer, como falar, ainda, de uma aprendizagem cujos conteúdos já estão dados de antemão?

Pode parecer que se está aderindo a uma coisa meio irresponsável. Seria como dizer que qualquer coisa pode, nada precisa ser feito e então “deixemos como está para ver como é que fica”. Não é, definitivamente, através de um espontaneísmo que se entende o brincar como um plano de experimentação. Ao contrário, isso envolve dedicação e pesquisa.

Então, convido você, leitor/leitora a dar uma volta, chamando o pensamento para caminhar...

Se acreditarmos que a educação infantil é somente uma questão de aprendizagem cujos conteúdos já estão dados de antemão, o brincar será pensado, de um lado, como um exedente de energia a ser gasta, do outro, como um instrumento ou veículo de aprendizagem. Antes disso, o brincar é um plano de experimentação.

Toda sociedade, todo organismo quer se reproduzir. É o desejo imenso de tornar igual e vencer a morte. Porém, isso gera problemas, alguns até mesmo dados à perseguição ou eliminação da diferença. Para tanto, basta lembrar um pouco as intolerâncias, discriminações etc. A educação deve decidir qual a sua tarefa: a de tornar igual ou a de abrir espaço para a diferença. A escola, nos mostra Foucault, produz sempre o sucesso e o fracasso. A “criança problema”, aquela que foge à sua regra de sucesso previamente traçada é seu paradigma.

A aprendizagem, como os sistemas pedagógicos têm apresentado, é um programa feito para tornar igual. Gil Amâncio, brincante e artista, contou-me uma história (não importa que seja comprovada ou não): no antigo Egito os homens carregavam as pedras nas costas, enquanto as crianças brincavam de carregar pedras fazendo-as rolarem por galhos de árvores... As crianças estavam à frente dos adultos, que não podiam olhar para o que elas faziam. E isso porque têm a necessidade de tornar os pequenos iguais aos adultos. Todos nós sabemos a que preço nos tornamos adultos e iguais.

A questão, portanto, passa a ser: a escola consegue lidar com a diferença? E a que preço?

Experimentação é uma questão de tomar o real como sendo um lugar de não-modelos, de engendramento de singularidades, de não comparação. Quando as crianças correm pelos espaços, toda sorte de desvio, colisão e invenção ocorrem. Nesse plano, elas entram em interação com o mundo. Ninguém sabe o que vai acotecer. Nem as próprias crianças.

A pesquisadora em Pedagogia da Infância, Eloisa Acires Candal Rocha aponta no artigo A Pedagogia e a educação Infantil, novos parâmetros o fortalecimento da relação com a família na gestão e no projeto pedagógico, bem como a ênfase nos âmbitos de formação relacionados à expressão e às artes. O brincar é uma ponte entre esses mundos: da arte, dos cuidados familiares e pedagógicos com a infância, dos afetos e percepções corporais.

É difícil para os adultos, em condições normais, entender as potências da cultura lúdica da infância. Não sabem lidar com as energias desencadeadas. Porém, aparece, aqui, a pergunta crucial: os educadores deveriam se envolver com as brincadeiras infantis?

Quem disse que educadores/educadoras, por não serem crianças, não podem brincar com elas? Por que se satisfazem, muitas vezes, em vigiar os espaços livres do brincar? Por que cumprem esse papel que a ordem econômica reserva para os que lidam com a infância?

No entanto, quando aderimos à produtividade a todo custo, modelo vingente para muito do que se pensa para a educação infantil, esquecemos que a própria sociedade se modifica sem parar. A adesão aos parâmetros de uma sociedade de acumulação, apesar de sempre justificada como necessidade do “real”, não deixa de ser um modo de viver a vida dos afetos, de organização da libido. E essa mesma aderência, quando reporta aos hábitos que tal sociedade cristaliza, torna suas ferramentas para a produção da vida (e de suas paisagens) inadequadas para o próximo momento.

E então, para que tipo de sociedade estamos querendo preparar nossas crianças? Muito do que já se ensinou deverá ser necessariamente desaprendido. E então, educador, como ficamos?

As crianças pequenas, dentro do programa de educação infantil voltado para o progresso a todo custo, não estão podendo dispor de sua tekné – do brincar como um modo de entrar no mundo – que é realmente e, de modo concreto, um instrumento de conhecimento. Difícil para nós é percebermos a riqueza desse conhecimento. Nisso, infelizmente, não fomos treinados. Mas nunca é tarde. Digo sempre: é preciso aprender com as crianças! Então, educador, consegue me explicar a tekné de uma criança de dois anos?

Se o brincar é da vida, ele possui um programa implícito que precisamos, do ponto de vista pedagógico, torná-lo explícito. Isso não quer dizer que é fazer do brincar um instrumento pedagógico, acrescentando-lhe uma finalidade extrínseca. Pelo contrário, é perceber seu interesse/desejo.

O brincar, como experimentação, inclui conhecimentos aprendidos. Mas os supõe, sempre, para serem desaprendidos. A experimentação é nômade: põe as coisas em movimento. Não se pode prever de antemão o resultado, exercitando-se antes um saber que se inventa a si próprio no ato de caminhar.

O brincar deveria ser tomado pelos programas de educação infantil como um modo de organização da experiência que contribui para a instauração de rotinas criativas.

Para tanto, é preciso adotar o ponto de vista de que o brincar não se encerra em modelos de experiência. Quando as crianças estão brincando, elas instauram um plano de vida que diverge de qualquer modelo. Nós, ao contrário, é que empurramos tais vivências para os contornos duros e molares. O brincar é uma agitação molecular. Do ponto de vista da libido, ele é polimorfo. Do ponto de vista do conhecimento, ele é pura curiosidade e invenção.

Mesmo se a criança repete nas suas brincadeiras, por exemplo, quando sempre procura num mesmo lugar a outra que se esconde – isso não é conservadorismo. A criança, mais do que qualquer um, sabe que é preciso um círculo de repetição do desejo. Mas, no centro apaziguador disso, ressaltam Deleuze e Guattari na obra Mil Platôs, sempre há motivos e contrapontos. Você já pensou que a trajetória de uma criança no espaço pode ser música? Por que os educadores não são treinados na ampliação da sensibilidade em vez de serem apenas os que vigiam e tomam conta? Em que medida eles se permitem serem modificados por um olhar-criança?

Quando numa rotina escolar as crianças pequenas vão para o pátio ou para outro lugar em fila, que tipo de mundo ou paisagem isso produz? A de uma ordem que resiste à agitação caótica da vida. Só pode fracassar, obviamente. Ao contrário disso, se as crianças vão caminhando livremente, elas colidem umas com as outras, inventam desvios, linhas de errância, descobrem mundos e produzem paisagens. Ahh... isso dá muito trabalho para aqueles que lidam com a educação infantil. Não basta vigiar. Tem que caminhar junto.

As rotinas escolares são modos de repetição que geram um chão para as crianças. A questão reside em pensá-las como meios de incorporação de um pouco de agitação molecular em nossas vidas. Isso supõe encontrar as motivações intrínsecas às próprias atividades. As crianças estão, nessa fase, explorando o mundo de um modo múltiplo, conectivo, molecular, sensível e não hierárquico. Cabe à educação infantil favorecer essa busca de conhecimento inventivo e criador. O brincar mostra os caminhos.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

O brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação




“O corpo em movimento, na sua agitação emocional e criativa, não é admitido na escola senão durante o ‘recreio’ quando o professor vigia e a rigor observa, evitando misturar a sua autoridade a esses jogos pueris. É a vida muito tempo controlada que explode. A nós, é precisamente essa vida, esse movimento que interessam, e com os quais queremos trabalhar porque são a única expressão verdadeira da criança”. Lapierre e Acouturier[1]

O brincar corporal e exploratório, esse o plano experimental para o Teatro-Educação. Quando comecei a trabalhar com crianças numa proposta não diretiva, fui tocado por algo que passou a me perseguir o resto da vida: o corpo em movimento e sua expressividade. No entanto, esse plano intensivo é de difícil assimilação pelos projetos pedagógicos, quando o conhecimento é tomado exclusivamente no seu aspecto racionalista. Não quero, no entanto, advogar uma proposta irracionalista. Não precisamos viver nesse binarismo. Ao contrário, seguindo o mestre compositor Koellreutter, eu diria que se trata antes de uma proposta a-racional.

Lapierre e Acouturier são dois autores que podem inspirar, em muito, a criação de um plano experimental que envolva o brincar corporal. Independente da perspectiva de psicomotricidade relacional e sua prática, o que propôem é uma ponte entre o sistema voluntário e involuntário. O brincar é essa ponte. No caso, trata-se de retomar contato com a via do tônus corporal.

Entretanto, a maior parte das teorias e práticas de Teatro-Educação têm por base a idéia de representação. E isso, para uma educação de base racionalista e logocêntrica, é um prato cheio. Ora, a arte não foi feita para tornar-se um instrumento de aquisição de estágios de desenvolvimento mental. Antes disso, ela é um modo de conhecimento que se realiza pela singularidade. Isto é, pelo desigual.

A via do corpo que brinca é a da sensibilidade. Há inteligência nisso.

De Lapierre e Acouturier tirei essencialmente o contato dos corpos mediados por objetos. Os exercícios criados a partir disso permitiram-me descortinar um mundo de micro-sensações, envolvendo um plano de criação dotado de grande plasticidade. Um desses exercícios é o que faz uso de panos, por exemplo: as crianças criam a partir da relação mediada pelo uso dos objetos. Seria algo como deixar que o corpo conte a história - sem mímica, apenas porque está em envolvido com o que o afeta. Em vez de enfatizar a idéia do teatro como representação, passei a buscar nele a vida do movimento, da plasticidade, da sensorialidade. O que me levou às pesquisas em improvisação, dança contemporânea e teatro físico e pós-dramático.

Podemos chamar esse plano de experimental corporal de pré-reflexivo. E é nessa explosão da vida que ocorre no brincar não-dirigido que encontramos as forças expressivas da criança. Não há dúvida alguma: antes de querer ensinar teatro para crianças, procuro aprender com elas. E é isso que levo para adolescentes, atores e bailarinos. Voltar à vida do corpo.

O brincar exploratório e sensível da criança apresenta uma cultura que se organiza como jeito de corpo, como vivência tônico-muscular. A pergunta que fica: a criança que brinca precisa de aprender teatro? Afirmo que não - vejaTeatro, Educação e cultura do brincar . Ela precisa de espaços e desafios, de artistas-educadores ou de educadores sensíveis que possam abrir espaços para o brincar e acolher suas criações livres. E isso é um modo de teatro. O que entra em ressonância com os teatros físicos. O que dificulta esse caminho favorável ao brincar é, de um lado, a predominância do teatro-representação (racionalidade, oratória, comportamento social aprendido, regras e discursividade). Ao contrário, proponho um teatro-experiência (a-racionalidade, ênfase na abertura perceptiva, volta à sensorialidade como um plano de inteligência e conhecimento).

Referências:

[1] Lapierre e Acouturier - Simbologia do Movimento - Ed. Artes Médicas - Porto Alegre.

Imagem: Portinari - Meninos Brincando