sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O menino brinca sozinho: linhas de errância


"...[what] we are doing is living, and that we are not moving toward a goal, but are, so to sepeak, at the goal constantly and change with it, and the art, if is going to do anything useful, should open our eys to this fact". John Cage

(tradução livre: " [o que] nós estamos fazendo é vivo, e nós não estamos nos movendo em direção a um objetivo, mas estamos, por assim dizer, no objetivo mesmo e nos modificando com ele, e a rte, se ela tem alguma utilidade, deveria ser de abrir nossos olhos para este fato").

Referências:

John Cage foi um músico e performer que exercitou e difundiu a experimentação artística, influenciando não só a música mas todo o campo da cena contemporânea (dança, teatro, performance art).
Imagem: LCG - Luís Felipe brincando nas areias do Rio São Francisco, em Pirapora-MG.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O brincar: percurso de leituras (1)

Uma leitura que me marcou muito foi Hommo Ludens de Huizinga. Lembro-me de como fiquei tomado pela densidade do texto. O que me tocou em primeira mão foi a noção de que as instituições mais sérias, de certo modo, não passam de jogo. E em outra mão, marcou-me a noção de autonomia desse espaço que é o jogo:

"Ele [o jogo] se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância ele se nos apresenta: como um intervalo em nossa vida cotidiana."
Comecei a estudar Piaget. Foi por força da novidade que era o construtivismo na educação. Dois livros tiveram seu lugar: A formação do símbolo na criança e O juízo moral na criança.

Durante muito tempo esses dois textos fizeram minha cabeça sobre o significado do brincar na educação. As teorias sobre o sensório-motor, sobre o jogo simbólico etc., passaram a estruturar minha atenção sobre o brincar e o papel do teatro na educação. Tive por base a noção muito clara de que a criança pequena não faz teatro, que ela "não comunica" o símbolo, pois este seria pessoal, intuitivo, não generalisável. Depois, descobri que havia duas coisas distintas: a) jogo dramático e b) jogo teatral. A partir da introdução de Ingrid Dormine Koudela ao teatral de Viola Spolin, que retoma Piaget, passei a enfocar minha atuação por essa linha de pensamento. Por exemplo: entendia a iniciação ao teatro com as crianças que somente já estivessem aptas a realizar a "comunicação teatral", que seria combinação de jogo de regras e simbolismo (o aspecto mais inconsciente do segundo com a objetividade do primeiro).

Tudo isso, hoje, não se sustenta mais. Comunicação? Arte não é comunicação. Num momento, todo esse edifício ruiu de uma só vez. Como disse Juliana Saúde Barreto, arte-educadora e pesquisadora do teatro: depende da noção de teatro que está em jogo.

Depois li a escola russa: Luria e Vygotsky. Não pretendo sintetizar nenhum deles aqui, mas dizer muito mais em que eles me afetaram. As noções sobre as relações entre significado e objeto no brincar me parecem, ainda hoje, fecundas. Mas há uma visão equivocada sobre o brincar: este é tomado como uma espécie de atividade compensatória (Huizinga já havia demonstrado as limitações dessas concepções psicológicas do brincar), pois a criança brincaria de montar cavalo num cabo de vassoura porque não pode montar num cavalo real... Ora, não é nada disso. Essa comparação da criança - e de suas potências desejantes - em relação a um real a que teria que adaptar (Piaget também comunga das mesmas idéias adaptativas) expõe na verdade o agenciamento maquínico dessas teorias. Ou seja, supõe uma ciência e uma verdade ali onde apenas tratam a criança como um ser inferior e toda as forças desejantes na mesma ordem.

No meio disso, três autores forneceram contra-pontos essenciais para revidar o ataque racion
alista com um vitalismo alegre e potente: Gianni Rodari, Lapierre e Gilles Deleuze.

Gianni Rodari libertou-me,
com sua Gramática da fantasia, das amarras produzidas pelas formações teóricas que subjugavam o imaginário e a arte.

No meio disso, comecei a ler Lógica do sentido, de Gilles Deleuze. Ainda não estudara filosofia, mas o texto me trouxe um sopro de liberdade. No entanto, a minha formação filosófica (não tive cursos de Nietzsche e nem de Deleuze), acabou por corroborar a influência de Piaget e seu racionalismo.Somente anos mais tarde, no curso de mestrado em artes, voltei a Deleuze, que me tomou por inteiro, de um só golpe. Quanto à Lógica do sentido, ali estavam as intuições e forças que já haviam me reconduzido, no teatro-educação, às séries disjuntivas, à criação como acontecimento e singularidade, como ato de expressão, pois, é a partir de
Lewis Carrol que Deleuze afirma:

"Passar do outro lado do espelho é passar da relação de designação à relação de expressão".
O que tem consequências para a arte-educação e a defesa do brincar. O instrumentalismo pedagógico transforma teorias em procedimentos, subjugando inclusive a criação. Tais sistemas englobantes transformam toda a alteridade numa derivação de seus próprios agenciamentos. No caso, a passagem da designação à expressão é um dos caminhos para entender o papel singular do brincar e da arte na educação. Deleuze mostra, ainda, que
"O bom senso desempenha papel capital na determinação da significação. Mas não desempenha nenhum na doação de sentido; e isto porque o bom senso vem sempre em segundo lugar, porque a distribuição sedentária que ele opera pressupõe um outra distribuição, como o problema dos cercados supõe um espaço primeiro livre, aberto, ilimitado..."
Com Lapierre retomei aquilo que o brincar uma vez havia me dado: as potências alegres e desejantes, a importância de não culpabilizar o desejo, a prioridade do movimento e do tônus no trabalho com crianças (e com atores também).

\outra leitura importante foi A educação estética do homem, de Schiller por onde aprendi sobre o impulso formal e o impulso sensível - de como o brincar é uma combinação dos dois. Em decorrência, a Crítica da faculdade de julgar de Kant levou-me, mais uma vez, ao brincar como atividade cujo fins residem nela mesma. E com Kandinski, as linhas e sonoridades do plano expressivo.

Outras leituras perpassam esses caminhos. Por agora, somente um olhar sobre algumas delas.


quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Encontro em Cuiabá: a produção teatral para crianças

Estive em Cuiabá no dia 06.10 para discutir a Produção Teatral para Crianças, na Mostra Internacional de Teatro Infantil.

A minha apresentação teve por base as relações entre a produção cultural e a cultura da criança. Por que essa linha de tratamento? Entendo que a produção cultural não pode deixar de ser contextualizada: o significado da infância em nossa sociedade.

Portanto, apresentei como linha mestra o que Clarice Cohn chama de "a criança como sujeito cultural ativo e produtor de sentido sobre o mundo" (Antropologia da Criança, ed. Jorge Zahar).

Contexto: a criança como produtora de cultura

Esta abordagem traz, assim, uma "novidade" que, entretanto, encontra barreiras: a) por parte de um sistema de ensino que não consegue aceitar a criança fabuladora, isto é, a criança como produtora de cultura; b) por parte da indústria cultural que somente trata a criança como mera consumidora (e muito da produção teatral destinada a esse público vai nessa direção); c) pelo sistema da reprodução social, que insiste em ver a criança como o ser que "ainda não é", que deve ser objeto de investimentos para "ser" no futuro.

O espetáculo para crianças e a fabricação da infância

André Ferraz, criador e pesquisador teatral, cuja dissertação em mestrado tem dsicute o teatro para crianças do ponto de vista do ator, lembra no texto "A infância e o teatro infantil", que o espetáculo para adultos era, muitas vezes, em diversos contextos históricos, partilhado pelas crianças. Remonta-se, aqui, às teses de Philippe Arriés sobre a história social da infância. Em outras palavras, sobre a fabricação da infância, de como esta categoria foi produzida socialmente.

Tomei por foco, nessa segunda parte, a relação entre o mundo de cultura das crianças e o mundo de cultura compartilhado. Vejamos isso: o mundo de cultura das crianças é tomado como toda a produção de sentido que as crianças produzem nos seus contextos de vida. A cultura das ruas, como explicitado por Edmir Perrotti, é justamente um desses contextos. Não que tais espaços sejam vistos sem quaisquer relações com o mundo adulto, com as relações sociais. Antes disso, são espaços em que as crianças podem realizar trocas e interações entre si.

A cultura das ruas é expressão, assim, do mundo de cultura produzido pelas crianças. No entanto, com os processos de modernização e ampliação do capitalistmo por todos os âmbitos da vida, esse mundo de cultura, como explicita Perroti, sofre, cada vez mais, de um encolhimento sensível. Em contrapartida, a criança deixa de ser produtora de cultura para ser meramente consumidora.

Como se pode ver, a questão da produção cultural para crianças não pode ser dissociada deste contexto: o lugar da infância na nossa sociedade. No caso, como as crianças produzem sentido e como isso é mais ou menos valorizado socialmente

Já o mundo compartilhado é aquele em que adultos e crianças ainda não foram segmentados: o circo, as festas religiosas populares, os ritos e os mitos que são transmitidos pelas gerações (a contação de histórias, por exemplo).

Nesse momento, uma pausa para rever nosso conceito de cultura, sem o quê tudo o que dissemos se esfuma pelo ar. Cultura não como algo que a criança irá paulatinamente aprender, como se fosse uma tábula rasa. E nem como um valor social conferido a poucos objetos e pessoas. Vemos a cultura como todos os modos de fazer, sentir, pensar, criar e viver.

Ocorre, assim, uma série de trocas entre o mundo de cultura da criança e o mundo de cultura compartilhado (festividades, ritos, mitos transmitidos, circo etc.). Entretanto, tais espaços de compartilhamento foram se modificando, visto que no processo de modernização capitalista, a criança foi sendo investida, cada vez mais, como mera consumidora. São outros "ritos" que se impôem, mas que impôem ao sujeito o próprio sentido.

Paralelamente, a criança passa a viver nos espaços de confinamento, como esclarece Perrotti: toda a sua produção de sentido vai se dar em creches, escolas, cursos especializados etc. Não que isso seja algo ruim, mas apenas que é diferente e produz, afinal, outros agenciamentos desejantes. Além disso, as políticas de proteção da infância passam a reivindicar justamente os cuidados especializados etc. O mundo de cultura da infância caractetizado pela cultura das ruas encolhe cada vez mais. E, com isso, surgem produtos destinados especialmente às crianças. Um grande mercado produtor de cultura.

Nesse ponto, podemos traçar rapidamente uma taxonomia dos espetáculos produzidos para as crianças: a) aqueles que visam a criança de modo instrumentalizado, que não consideram a consideram como produtora de cultura (grande parte da produção audiovisual, dos shows televisos etc vão nessa direção e muito do teatro também); b) aqueles que seguem a trilha acima, mas degradam cada vez mais a condição do teatro infantil, realizando cópias dos roteiros do cinema de sucesso etc., não considerando a produção nem do ponto de vista qualitativo (investimento em conteúdo original relevante) e nem do ponto de vista quantitativo (investimento dos valores agregados do mercado de arte profissional); c) os que pensam criativamente o mercado para crianças, buscando entretenimento de qualidade, valorizando a inteligência das crianças; d) aqueles que pensam e criam obras artísticas sem a focalização acima ("C"), mas que, como dizem Lygia Bojunga Nunes, produzem criações que não "desagradam as crianças"; e) e, por fim, as criações que, na trilha "d", têm por tema a infância e sua cultura lúdica, trazendo traços de memórias dos criadores, valorizando a cultura lúdica da infância.

Note-se que as linhas "c", "d" e "e" operam, ainda, por misturas. Essa breve taxonomia visa apenas delinear - colocar em linhas - modos de produzir e criar espetáculos de artes cênicas para crianças.

A conexão mundo de cultura da infância -

Podemos, agora, falar um pouco dessas criações que entram no mercado como espetáculos para crianças mas que não se curvam à lógica instrumental do mesmo. Para tanto, tomo como exemplo e inspiração maior, o filme Palhaços, de Federico Fellini. Trata-se de uma belíssima mistura de documentário e ficção no qual o mundo dos palhaços é apresentado com todo o seu delírio, traçando relações, ainda, com a infância do próprio Fellini. Vemos o menino deslumbrado com o mundo do circo e dos palhaços, mostrando como estes eram vistos também sob o aspecto de personagens marginais que habitaram também a infância do cineasta. E aqui chamo a atenção para os fenômenos de borda e vizinhança, que barrados pelo mundo adulto da produtividade, trazem imagens e afecções de sensibilidades outras. A cultura da infância, quando ainda nos espaços não confinados da cultura das ruas, interagia com esse mundo marginal, fabuloso, muitas vezes inventado na própria imaginação (histórias estranhas que povoam o universo infantil).

Por fim, abordei duas criações: De banda pra lua, do grupo mineiro Armatrux, com direção de Eid Ribeiro e Roda pé, da Cia Balangandança de São Paulo. Exemplos de produção cênica para crianças que respeitam sua inteligência e prolongam, por outros meios (do espetáculo e do mercado cultural) a cultura lúdica da infância e seu modo de produzir sentido.

Depois disso, discutimos com os artistas e educadores, numa mesa redonda, o teatro e a escola.