terça-feira, 18 de novembro de 2008

Educação e violência: faltam soluções criativas

As nossas escolas públicas estão configuradas, quanto à adiministração dos tempos e dos espaços, com base nas sociedades disciplinares. Foucault produziu o conceito para definir um tipo de organização social fundada no fechamento e no isolamento, na vigilância e na punição. Alguns exemplos: a caserna, o convento, a escola, o hospital, o hospício... Exclusão e inclusão, fechamento e codificação definida, estável, tudo isso faz parte de um tipo de sociedade cujo fundamento é a disciplina.

O atual estágio do capitalismo modifica completamente esse quadro. Gilles Deleuze mostra, num texto magistral, que vivemos não mais em sociedades disciplinares, mas sim em sociedades de controle. Não que as duas não ocorram simultaneamente, pois as últimas ainda convivem com aquelas. No entanto, o fundamento é outro.

Veja bem o exemplo de um presídio. Sua fabricação atendia à necessidade de isolamento, de vigilância, de punição. Os limites eram, portanto, fatos consumados. Veja, agora, o que ocorre num presídio, tendo em mente a noção de sociedades de controle: quem está lá dentro detém informações, comanda operações, possui conexões com vários extratos sociais... Algo mudou, não? As fronteiras que garantiam o fora e o dentro estão esburacadas.

Cada vez mais discutimos as dificuldades da escola pública, principalmente em relação à violência. No entanto, as soluções apresentadas, em sua maior parte, ainda estão dentro dos parâmetros fundadores da instituição, que são as sociedades disciplinares. E o que menos acontece numa escola pública, dadas as atuais condições sociais, em contextos de violência, é disciplina.

Encontramos os professores apavorados, recuados e com medo. Horários e espaços de confinamento que explodem com todas as linhas de fuga... No entanto, não faltam análises e mais análises sobre as causas da violência... É claro que algumas escolas públicas conseguem, ainda, funcionar regimentalmente dentro do parâmetro disciplinar. No entanto, quando nos aproximamos mais e mais das regiões submetidas à violência, o quadro muda. O esburacamento do regime de significação é total:

Vapor barato, um mero serviçal do narcotráfico
Foi encontrado na ruína de uma escola em construção
Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína
Tudo é menino e menina no olho da rua
O asfalto, a ponte o viaduto ganindo pra lua
Nada continua
E o cano da pistola que as crianças mordem
Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito
Mais bonita e
Muito mais intensa do que no cartão postal
Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial...
Caetano Veloso - Fora da ordem
Enquanto a escola não muda e se mantém rigidamente no parâmetro disciplinar (mas vasa por todos os lados...), o capitalismo se faz criativo e cognitivo. Não que o capital nos seus fluxos desterritorializantes deixe de ser menos perverso. Ocorre que, agora, produz riqueza por outros meios.

Do lado da escola pública, sua configuração dos tempos e espaços, isto é, dos seus agenciamentos maquínicos, continuam atendendo a parâmetros que não mais funcionam. Aliás, funcionam sim, mas para que as crianças não aprendam... Posso estar sendo injusto e generalisando por demais, porém, a realidade da violência e da não-aprendizagem se impõem sobre grande parte das escolas públicas. Para tanto, poderia ser feito, por exemplo, o levantamento do número de professores que passam nos concursos e desistem em poucos anos. Muitos por medo, outros porque não vêem perspectivas reais de modificação do quadro, outros, ainda, por falta de condições mínimas... Em relação à arte, nem se fala. Não encontramos, na maioria das vezes, espaço digno para uma aula de teatro, para dar somente um exemplo. Em algumas escolas há video e laboratórios, mas não existe uma sala vazia e ampla para o corpo se expressar livremente. Obviamente, uma questão de valores. Há estudos importantes que apontam para o uso da expressão livre e artística na educação, quando os outros recursos falharam.

As escolas privadas estão se adaptando rapidamente aos novos fundamentos das sociedades de controle. Numa instância, elas estão incrementando a conectividade - pelo menos na área científica e na informática. É verdade que em relação à educação da sensibilidade, continuam os problemas. Quanto ao "confinamento", que permanece, este não é mais configurador da experiência pedagógica e social na rede particular. É somente um elemento de "segurança". Erguem-se os muros contra o resto da sociedade... Nas escolas públicas, o cercamento é antigo, disciplinar, sendo que este não produz mais qualquer disciplina - e o resultado só pode ser frustrante.

Um dia passei em volta de minha velha escola primária. Voltei no tempo, quando cheguei do interior, no início dos anos 60. Tinha um temor enorme da professora. E um grande respeito. Morria de medo que ela visse, por exemplo, que não havia cortado as unhas. Parei e fiquei olhando pela janela. E o que vi? Um grupo de adolescentes debochando de um outro que dançava mais debochadamente no meio do corredor, com um celular numa das mãos, os braços abertos, rebolando. E o professor, o que fazia? Nada, estava paralisado. E no entanto, as carteiras são as mesmas, a sala é a mesma, a disposição hierárquica idem. Somente uma coisa mudou: o regime disciplinar não funciona mais.

Brizola (no Rio) e, recentemente, Marta Suplicy (São Paulo) tentaram solucionar o problema. Mas os projetos, em grande parte, arrojados, não tiveram continuidade. Parece-me que a classe média paulista nem se preocupou com o desmanche que ocorreu em São Paulo. E veja bem: não é que o projeto pedagógico dependa de tempos e espaços, mas ele se configura nisso, na materialidade do viver cotidiano e de sua rede de conexões.

Em Belo Horizonte há um projeto muito interessante e que tem chamado a atenção pela ousadia e abertura para uma nova educação: a Escola Integrada - na qual as crianças permanecem mais horas em processos educativos, com atividades livres, culturais etc. Começam os ensaios para sair da antiga configuração disciplinar.

A solução para uma educação nova, que consiga enfrentar as questões mais urgentes (sociais e pedagógicas), vai exigir mais recursos, em todos os sentidos. Tudo o que vivemos hoje em termos de violência social e urbana é o karma acumulado de expropriações históricas. Alguém duvida disso? Ou investimos (e muito) em educação pública ou o mundo vira um inferno.

Anoto algumas breves linhas sobre o que chamo de soluções criativas. Elas começam por um investimento em:

a) qualificação de profissionais (de ponta);
b) remodelação completa do currículo (com flexibilização combinada);
c) em espaços inteligentes (salas modulares, que viram espaços de cultura, de conexão, de ciência e de invenção);
d) operações de rede e em territórios (estudos das comunidades, circuitos, trajetos, vínculos etc.);
e) tempos inteligentes e dinâmicos (voltados à recuperação rápida da atenção descentrada);
f) cultura e sua transversalidade, com ênfase na afirmatividade do desejo, na valorização do indivíduo, de sua expressão de vida e conexões com os coletivos e comunidades.

São apenas observações de quem, do lado da arte e da cultura, vê a educação. Tudo isso pode parecer utopia para alguns. Porém, existem projetos que se pautam pela coragem, pela insistência de educadores e governos, apontando para realizações consistentes e promissoras. Devemos incluir o exemplo da Escola da Ponte em Portugal. Portanto, está na hora de sair da política de lamúrias e partir para a ação planejada, com altos investimentos em recursos cognitivos de ponta: numa nova configuração de espaços e tempos da escola pública.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O brincar é um platô

O brincar como um platô. Antes de explicitar qualquer referência sobre a definição do conceito fabricado por Deleuze e Guattari, quero dizer como fui afetado (e modificado) mais uma vez pela invasão doce e bárbara da cultura lúdica da infância. E assim falo do platô.

Os dois meninos brincavam. De longe eu ouvia as vozes de excitação e, posso dizer com Oswald de Andrade, da alegria que é a "prova dos nove". Estava navegando na internet, mas imerso na luminosidade sonora de uma tarde tomada por vozes de crianças.

A tarde de domingo sumia vagarosamente com sua luz. E o que chegava aos meus ouvidos eram todos os sons vindos de uma fabulação criadora. Não sabia o que estava acontecendo, mas havia uma eletricidade produzindo um meio expressivo. E então você podia sentir isso no ar.

Ocorre que eu necessitava assistir a um espetáculo e, como compromissso, tinha que levar um dos meninos embora. Estava contando desde o meio da semana o momento de ir àquele teatro. Afinal, faz parte do meu ofício. E era o meu programa!

Tive que cortar a brincadeira. A expressão dos corpos foi fatal: caiu uma geleira em cima deles. Agora, lembro-me das minhas tardes de domingo, quando menino, brincando na rua. Ouço a voz de minha mãe me chamando para tomar banho e ir à missa. E era sempre assim: uma tristeza imensa me fazia sucumbir diante do entardecer, naquela terra vermelha do minério. E se infiltrava em mim a dor de uma saudade infinita!

Os meninos, porém, continuaram fluindo com trocas verbais, enquanto subiam as escadas. Entraram na sala ainda arrastando o seu meio: uma vibração contínua, uma corrente de alta intensidade. Como precisava de sair logo, preparo um lanche rápido para eles. E coloco um copo de suco de uva para cada um enquanto preparo outra coisa. E de repente um dos copos pula na mão de um dos garotos, derramando suco pra cima dele e pra tudo quanto é lado. Como isso foi possível? Tive a pequena sabedoria de não culpar, mas não podia deixar de dizer que estava atrasado e que corria o risco de perder o espetáculo...

Sai, depois de limpar e secar rapidamente o garoto e ainda lavar o chão às pressas. Corri muito para pegar o espetáculo. Mas um vácuo crescia no fundo do meu estômago: foi necessário o copo de suco derramado para que os meninos mudassem de meio expressivo. Só assim poderiam deixar o platô em que se encontravam... Foi pelo susto que saíram daquele platô. Enquanto eles viviam um jogo de mútuas afecções, comigo só havia impaciência em relação ao que me aguardava, o futuro.

A minha lição: preciso aprender a morrer a cada minuto! A abandonar planos, a mudar de direção, a respeitar a duração de um platô. Qual a importância da minha programação? Não vá pensar em modelos e regras. E nem em espontaneísmo, ou algo do tipo "o menino é tudo e o adulto é nada". Tudo isso é bobagem. O lance não estava no fato de ceder, de abandonar o meu desejo e ficar à mercê do outro. Como muitos adultos que não têm vida própria. Nada disso: o lance estava no exercío da flexibilidade, de um lado, e da escuta sensível da existência de um platô do outro.

Meninos precisam de ritos para sair de um espaço e tempo de criação e fabulação. Para mudar de meio. E nós podemos aprender com isso: como num trajeto há tanta intensidade reunida e distribuída...

Definição de platô: uma zona de intensidade contínua. Segundo Deleuze e Guattari:

"Gregory Bateson serve-se da palavra "platô" para designar algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior. Bateson cita como exemplo a cultura balinense, onde jogos sexuais mãe-filho, ou bem que-relas entre homens, passam por essa estranha estabilização intensiva. "Um tipo de platô contínuo de intensidade substitui o orgasmo", a guerra ou um ponto culminante. É um traço deplorável do espírito ocidental referir as expressões e as ações a fins exteriores ou transcendentes em lugar de considerá-los num plano de imanência segundo seu valor em si." (Mil Platôs, vol. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa, 1995, RJ)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A criança e as potências do movimento

A criança vive fazendo mapas: incide os afetos nos trajetos e vice-versa (Deleuze). Daí o movimento como operador de sentido - de uma lógica da sensação. Ocorre que na criança o movimento prolifera tanto que os adultos não conseguem valorizá-lo, até porque já estão por demais entediados. Uma outra economia da libido, portanto, é o que implica o movimento livre e exploratório da criança. Como o movimento exploratório e sensível é da ordem do brincar, não sendo economicamente produtivo, ele não tem utilidade. E no entanto, todas as forças germinativas estão ali, em agitação molecular. E sobre as potências da vida e do movimento Bergson tem o que dizer:
"Parece-me (...) verossímil que a consciência se entorpece quando não há mais movimento expontâneo e se exalta quando a vida se apóia na atividade livre."

Bergson, H. - Conferência proferida na Universidade de Birmingham, em 29 de maio de 1911 Citado por Marcos Lyra em Bergson: a consciência e a vida (publicado em O estrangeiro.net)