quinta-feira, 24 de maio de 2007

Espaços do brincar

Paul Klee: Rising Sun














Quando visito uma escola de educação infantil, a minha atenção dirige-se imediatamente para os espaços reservados para o brincar.

Muitas vezes, os espaços estão já pré-figurados, de modo que as crianças apenas devem se encaixar neles. A amarelinha desenhada em tamanho pradão, os carrinhos ou brinquedo industrializados, e por aí vai...

Não é saudosismo, mas necessidade de sobrevivência de nossas crianças e, por isso mesmo do povo do futuro: que hajam quintais!

Terrenos baldios e quintais (e, num outro tempo, as ruas) foram os espaços livres de descoberta e imaginação para muitas crianças. O capitalismo ainda não as havia descoberto como sujeitos para o consumo. Assim, largados ao léu, podíamos correr, brincar, inventar e habitar mundos.

As escolas de educação infantil, muitas delas, cederam ao capitalismo na sua descoberta do filão infância. E assim povoam os espaços de objetos já configurados para a brincadeira.

Há uma sala vazia, com um baú ao fundo, cheio de objetos variados? É importante que seja vazia, que se possa correr, cair, rolar etc. Mas, na economia escolar, uma sala vazia parece desperdício. Ora, o brincar é puro desperdício - é luxo dos sentidos. E não vale a pena para o capitalismo, assim como para a sujeição das forças da vida à princípios transcendentes (objetivos traçados pelo comprometimento adulto com esquemas de aprendizagem fechados etc.), abrir espaço e tempo para os sentidos. Em primeiro lugar, porque implica em deixar de consumir e, em segundo, porque algo fugirá do controle!

Há espaços externos que permitem interações diversas? Há vãos livres?

Os brinquedos de subir e trepar, as cordas, os balanços, são definições prévias, mas configuram desafios físicos. O que eu questiono é o mundo pronto e pré-fabricado que se dá às nossas crianças. O mundo já vem pronto. Ao contrário disso, o brincar é a re-invenção do mundo. A sua adoção, para pensar com Bernard Stielgler, em suas singularidades. O consumo, ao contrário, ou a cultura que Stilegler chama de hiperindustrial, quer transformar as singularidades em padrões existenciais. Curiosamente, as crianças apropriam-se de objetos e arquiteturas produzidas como padrão e as pervertem completamente. Transformam seus usos. Porém, alguns projetos pedagógicos não entendem essa dinãmica e passam a já pré-figurar o desejo de transformação, próprio da infância.

Voltando a adentrar nos espaços de uma escola, eu me pergunto: há árvores? Árvores são o que há para a imaginação infantil. Encontra-se um pouco de terra?

E, afinal, a grande pergunta: os educadores que "tomam conta" dos espaços dedicados ao recreio foram educados para extrair conhecimento do ato de brincar? Estão preparados para entender cultura da criança como um modo de habitar o mundo, uma via de pensamento sensível, com seus traços expressivos e suas configurações energéticas?

Referência:

STIELGLER, Bernard. Reflexõies (não) contemporâneas. Organização e tradução de Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.

domingo, 6 de maio de 2007

A roda que gira por si só

Paul Klee, Angel full of Hope, 1939

Friedrich Nietszche, pela boca de Zaratustra, menciona três transformações do espírito: “como o espírito se converte em camelo, e de camelo em leão, e de leão, por fim, em criança”[1].

O espírito depara-se inicialmente com o seu senso de dever, com a pergunta pelo que deve carregar. Porém, uma segunda transformação se impõe: é preciso transformar-se em leão, “conquistar sua liberdade como se conquista uma presa”. Diante do “tu deves” o leão diz: “eu quero”. Não basta, portanto, ao ser humano admitir a existência dos valores, reconhecê-los - é preciso criar novos valores.

Mas o leão não consegue criar novos valores. Ele conquista a liberdade, enfrentando o “tu deves”. Com seu poder e sua força o leão é capaz de estabelecer condições para a criação de novos valores, superando a etapa do camelo que se contenta em carregar o mundo nas suas costas e garantindo a nova transformação do espírito, que é a criança. Entretanto, pergunta Zaratustra, “que é capaz a criança que nem sequer o leão pode fazê-lo? Porque haveria o jovem leão de se transformar em criança?” Não seria suficiente a força e o ímpeto da fera que conquista sua liberdade? Zaratustra, nos diz que a criança é “o esquecimento, um novo começo, um jogo, uma roda que move por si mesma, um primeiro movimento, um santo dizer sim”. Este é, para Nietzsche, o que é próprio do jogo de criar: viver no perpétuo estado automotor. Somente transformando-se em criança poderá o leão, que já conquistou sua liberdade, dominar o jogo de criar - esta roda que se move por si mesma.

É na experiência do brincar que podemos entender melhor uma atividade com motivação intrínseca - o que faz uma roda girar por si mesma. No modo como a criança apropria-se da experiência através do ato de brincar encontramos fortes intuições desse estado: o do ser que brinca.

[1] Nietzsche, F. - Assim Falava Zaratustra - Alianza Editorial - Madrid, 1972.