segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Infância e memória

Uma existência se abre quando levo meu filho mais novo de volta para sua casa. Andar ao lado de uma criança é sempre uma coisa muito especial. Mas naquele dia foi outra coisa: eu não andava mais em direção à sua casa com o objetivo de levá-lo tão somente, mas adentrava um mundo.

Explico isso melhor. Nós adultos nos perdemos do mundo real. Da vida corpórea e do sentido que lhe é inerente. Estamos sempre num monólogo interior, ausentes de nosso entorno e dos fluxos de consciência.

Volta e meia uma paixão triste, para pensar agora com Espinosa, me toma. Medito: que seja, tudo flui. E assim caminhamos os dois, conversando, mas deixando que a paisagem se desdobre em pura duração.

Folhas secas no chão, o ar limpo depois da chuva, a calçada, o céu, as casas... E mais folhas que aparecem aqui e ali, tudo em movimento, puro cinema.

Mas é a leitura de Bergson e Deleuze que me permite compreender melhor, mediante o que ele chama de intuição, o que vem a ser esse tempo presente. O presente é sempre o que passa. É sempre passado. E os tempos coexistem. Antes do presente, do qual procura se esquivar como sucedâneo de momentos, um após o outro, Deleuze instala-se, via Bergson, na pura duração, que é fluxo contínuo e heterogêneo, na qual os tempos coexistem, um em cima do outro, por camadas, e não linearmente, sucessivamente.

A descoberta do menino sobre o presente como o passado imediato é maravilhosa. Ainda aos 5 anos, lembro-me de ele me surpreendendo ao dizer:

- Agora, já passou...

Isso é maravilhoso.

No entanto, o mecanismo sensório-motor de nossos hábitos e linguagem produz uma situação de espera do que virá. Aprisionados entre uma imagem-lembrança e uma expectativa, nos recusamos a habitar uma pura duração.

Andávamos, então, de volta para a casa do menino. E não havia tristeza, nem da parte dele, nem da minha. E nem qualquer expectativa - não havia pressa de chegar a lugar nenhum. Sabíamos para onde íamos, só isso. E o tempo era todo nosso.

Veio até mim os idos da minha meninice, numa noite de Natal, virando uma esquina do bairro da minha cidade do nordeste de Minas, com meus revólveres de cowboy na cintura. Aquele passado coexiste com o presente que ele foi, essa a grande lição de Bergson, segundo Deleuze.

Quando habitamos uma duração pura, há um sucessão puramente interna, heterogênea e contínua (Deleuze, in Bergsonismo).

Subimos as escadas ainda conversando, os dois, findo o dia, esquecidos de si.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Quintarola: um blog sobre a cultura da criança e o ser quinteiro que nos acompanha

Imagem do blog Quintarola


Bonito demais de se ver (e ler) o blog Quintarola, publicado por Cibele Carvalho e Cláudia Souza. São dicas e luminosidades do ser criança e do mundo do quintal.

Conheci Cláudia há anos, quando trabalhávamos juntos no Balão Vermelho, uma escola-quintal de tempos outros & invenções mil. Ah... um dia conto um pouco disso tudo! Depois, os tempos vão e eu trago meu 4o bebê para o espaço-quintal-do brincar, o Clic (Centro Lúdico de Educação e Cultura, em BH), que Cláudia fundou com outras duas pessoas, a Catarina Beleza, musicista e sua chará Cláudia.

Cibele eu já conheci rapidamente, através de Ricardo Júnior, companheiro de andanças, teatros e filosofias - e, hoje, um filmaker de mão cheia.

Então, bom proveito!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Educação e violência: faltam soluções criativas

As nossas escolas públicas estão configuradas, quanto à adiministração dos tempos e dos espaços, com base nas sociedades disciplinares. Foucault produziu o conceito para definir um tipo de organização social fundada no fechamento e no isolamento, na vigilância e na punição. Alguns exemplos: a caserna, o convento, a escola, o hospital, o hospício... Exclusão e inclusão, fechamento e codificação definida, estável, tudo isso faz parte de um tipo de sociedade cujo fundamento é a disciplina.

O atual estágio do capitalismo modifica completamente esse quadro. Gilles Deleuze mostra, num texto magistral, que vivemos não mais em sociedades disciplinares, mas sim em sociedades de controle. Não que as duas não ocorram simultaneamente, pois as últimas ainda convivem com aquelas. No entanto, o fundamento é outro.

Veja bem o exemplo de um presídio. Sua fabricação atendia à necessidade de isolamento, de vigilância, de punição. Os limites eram, portanto, fatos consumados. Veja, agora, o que ocorre num presídio, tendo em mente a noção de sociedades de controle: quem está lá dentro detém informações, comanda operações, possui conexões com vários extratos sociais... Algo mudou, não? As fronteiras que garantiam o fora e o dentro estão esburacadas.

Cada vez mais discutimos as dificuldades da escola pública, principalmente em relação à violência. No entanto, as soluções apresentadas, em sua maior parte, ainda estão dentro dos parâmetros fundadores da instituição, que são as sociedades disciplinares. E o que menos acontece numa escola pública, dadas as atuais condições sociais, em contextos de violência, é disciplina.

Encontramos os professores apavorados, recuados e com medo. Horários e espaços de confinamento que explodem com todas as linhas de fuga... No entanto, não faltam análises e mais análises sobre as causas da violência... É claro que algumas escolas públicas conseguem, ainda, funcionar regimentalmente dentro do parâmetro disciplinar. No entanto, quando nos aproximamos mais e mais das regiões submetidas à violência, o quadro muda. O esburacamento do regime de significação é total:

Vapor barato, um mero serviçal do narcotráfico
Foi encontrado na ruína de uma escola em construção
Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína
Tudo é menino e menina no olho da rua
O asfalto, a ponte o viaduto ganindo pra lua
Nada continua
E o cano da pistola que as crianças mordem
Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito
Mais bonita e
Muito mais intensa do que no cartão postal
Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial...
Caetano Veloso - Fora da ordem
Enquanto a escola não muda e se mantém rigidamente no parâmetro disciplinar (mas vasa por todos os lados...), o capitalismo se faz criativo e cognitivo. Não que o capital nos seus fluxos desterritorializantes deixe de ser menos perverso. Ocorre que, agora, produz riqueza por outros meios.

Do lado da escola pública, sua configuração dos tempos e espaços, isto é, dos seus agenciamentos maquínicos, continuam atendendo a parâmetros que não mais funcionam. Aliás, funcionam sim, mas para que as crianças não aprendam... Posso estar sendo injusto e generalisando por demais, porém, a realidade da violência e da não-aprendizagem se impõem sobre grande parte das escolas públicas. Para tanto, poderia ser feito, por exemplo, o levantamento do número de professores que passam nos concursos e desistem em poucos anos. Muitos por medo, outros porque não vêem perspectivas reais de modificação do quadro, outros, ainda, por falta de condições mínimas... Em relação à arte, nem se fala. Não encontramos, na maioria das vezes, espaço digno para uma aula de teatro, para dar somente um exemplo. Em algumas escolas há video e laboratórios, mas não existe uma sala vazia e ampla para o corpo se expressar livremente. Obviamente, uma questão de valores. Há estudos importantes que apontam para o uso da expressão livre e artística na educação, quando os outros recursos falharam.

As escolas privadas estão se adaptando rapidamente aos novos fundamentos das sociedades de controle. Numa instância, elas estão incrementando a conectividade - pelo menos na área científica e na informática. É verdade que em relação à educação da sensibilidade, continuam os problemas. Quanto ao "confinamento", que permanece, este não é mais configurador da experiência pedagógica e social na rede particular. É somente um elemento de "segurança". Erguem-se os muros contra o resto da sociedade... Nas escolas públicas, o cercamento é antigo, disciplinar, sendo que este não produz mais qualquer disciplina - e o resultado só pode ser frustrante.

Um dia passei em volta de minha velha escola primária. Voltei no tempo, quando cheguei do interior, no início dos anos 60. Tinha um temor enorme da professora. E um grande respeito. Morria de medo que ela visse, por exemplo, que não havia cortado as unhas. Parei e fiquei olhando pela janela. E o que vi? Um grupo de adolescentes debochando de um outro que dançava mais debochadamente no meio do corredor, com um celular numa das mãos, os braços abertos, rebolando. E o professor, o que fazia? Nada, estava paralisado. E no entanto, as carteiras são as mesmas, a sala é a mesma, a disposição hierárquica idem. Somente uma coisa mudou: o regime disciplinar não funciona mais.

Brizola (no Rio) e, recentemente, Marta Suplicy (São Paulo) tentaram solucionar o problema. Mas os projetos, em grande parte, arrojados, não tiveram continuidade. Parece-me que a classe média paulista nem se preocupou com o desmanche que ocorreu em São Paulo. E veja bem: não é que o projeto pedagógico dependa de tempos e espaços, mas ele se configura nisso, na materialidade do viver cotidiano e de sua rede de conexões.

Em Belo Horizonte há um projeto muito interessante e que tem chamado a atenção pela ousadia e abertura para uma nova educação: a Escola Integrada - na qual as crianças permanecem mais horas em processos educativos, com atividades livres, culturais etc. Começam os ensaios para sair da antiga configuração disciplinar.

A solução para uma educação nova, que consiga enfrentar as questões mais urgentes (sociais e pedagógicas), vai exigir mais recursos, em todos os sentidos. Tudo o que vivemos hoje em termos de violência social e urbana é o karma acumulado de expropriações históricas. Alguém duvida disso? Ou investimos (e muito) em educação pública ou o mundo vira um inferno.

Anoto algumas breves linhas sobre o que chamo de soluções criativas. Elas começam por um investimento em:

a) qualificação de profissionais (de ponta);
b) remodelação completa do currículo (com flexibilização combinada);
c) em espaços inteligentes (salas modulares, que viram espaços de cultura, de conexão, de ciência e de invenção);
d) operações de rede e em territórios (estudos das comunidades, circuitos, trajetos, vínculos etc.);
e) tempos inteligentes e dinâmicos (voltados à recuperação rápida da atenção descentrada);
f) cultura e sua transversalidade, com ênfase na afirmatividade do desejo, na valorização do indivíduo, de sua expressão de vida e conexões com os coletivos e comunidades.

São apenas observações de quem, do lado da arte e da cultura, vê a educação. Tudo isso pode parecer utopia para alguns. Porém, existem projetos que se pautam pela coragem, pela insistência de educadores e governos, apontando para realizações consistentes e promissoras. Devemos incluir o exemplo da Escola da Ponte em Portugal. Portanto, está na hora de sair da política de lamúrias e partir para a ação planejada, com altos investimentos em recursos cognitivos de ponta: numa nova configuração de espaços e tempos da escola pública.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O brincar é um platô

O brincar como um platô. Antes de explicitar qualquer referência sobre a definição do conceito fabricado por Deleuze e Guattari, quero dizer como fui afetado (e modificado) mais uma vez pela invasão doce e bárbara da cultura lúdica da infância. E assim falo do platô.

Os dois meninos brincavam. De longe eu ouvia as vozes de excitação e, posso dizer com Oswald de Andrade, da alegria que é a "prova dos nove". Estava navegando na internet, mas imerso na luminosidade sonora de uma tarde tomada por vozes de crianças.

A tarde de domingo sumia vagarosamente com sua luz. E o que chegava aos meus ouvidos eram todos os sons vindos de uma fabulação criadora. Não sabia o que estava acontecendo, mas havia uma eletricidade produzindo um meio expressivo. E então você podia sentir isso no ar.

Ocorre que eu necessitava assistir a um espetáculo e, como compromissso, tinha que levar um dos meninos embora. Estava contando desde o meio da semana o momento de ir àquele teatro. Afinal, faz parte do meu ofício. E era o meu programa!

Tive que cortar a brincadeira. A expressão dos corpos foi fatal: caiu uma geleira em cima deles. Agora, lembro-me das minhas tardes de domingo, quando menino, brincando na rua. Ouço a voz de minha mãe me chamando para tomar banho e ir à missa. E era sempre assim: uma tristeza imensa me fazia sucumbir diante do entardecer, naquela terra vermelha do minério. E se infiltrava em mim a dor de uma saudade infinita!

Os meninos, porém, continuaram fluindo com trocas verbais, enquanto subiam as escadas. Entraram na sala ainda arrastando o seu meio: uma vibração contínua, uma corrente de alta intensidade. Como precisava de sair logo, preparo um lanche rápido para eles. E coloco um copo de suco de uva para cada um enquanto preparo outra coisa. E de repente um dos copos pula na mão de um dos garotos, derramando suco pra cima dele e pra tudo quanto é lado. Como isso foi possível? Tive a pequena sabedoria de não culpar, mas não podia deixar de dizer que estava atrasado e que corria o risco de perder o espetáculo...

Sai, depois de limpar e secar rapidamente o garoto e ainda lavar o chão às pressas. Corri muito para pegar o espetáculo. Mas um vácuo crescia no fundo do meu estômago: foi necessário o copo de suco derramado para que os meninos mudassem de meio expressivo. Só assim poderiam deixar o platô em que se encontravam... Foi pelo susto que saíram daquele platô. Enquanto eles viviam um jogo de mútuas afecções, comigo só havia impaciência em relação ao que me aguardava, o futuro.

A minha lição: preciso aprender a morrer a cada minuto! A abandonar planos, a mudar de direção, a respeitar a duração de um platô. Qual a importância da minha programação? Não vá pensar em modelos e regras. E nem em espontaneísmo, ou algo do tipo "o menino é tudo e o adulto é nada". Tudo isso é bobagem. O lance não estava no fato de ceder, de abandonar o meu desejo e ficar à mercê do outro. Como muitos adultos que não têm vida própria. Nada disso: o lance estava no exercío da flexibilidade, de um lado, e da escuta sensível da existência de um platô do outro.

Meninos precisam de ritos para sair de um espaço e tempo de criação e fabulação. Para mudar de meio. E nós podemos aprender com isso: como num trajeto há tanta intensidade reunida e distribuída...

Definição de platô: uma zona de intensidade contínua. Segundo Deleuze e Guattari:

"Gregory Bateson serve-se da palavra "platô" para designar algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior. Bateson cita como exemplo a cultura balinense, onde jogos sexuais mãe-filho, ou bem que-relas entre homens, passam por essa estranha estabilização intensiva. "Um tipo de platô contínuo de intensidade substitui o orgasmo", a guerra ou um ponto culminante. É um traço deplorável do espírito ocidental referir as expressões e as ações a fins exteriores ou transcendentes em lugar de considerá-los num plano de imanência segundo seu valor em si." (Mil Platôs, vol. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa, 1995, RJ)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A criança e as potências do movimento

A criança vive fazendo mapas: incide os afetos nos trajetos e vice-versa (Deleuze). Daí o movimento como operador de sentido - de uma lógica da sensação. Ocorre que na criança o movimento prolifera tanto que os adultos não conseguem valorizá-lo, até porque já estão por demais entediados. Uma outra economia da libido, portanto, é o que implica o movimento livre e exploratório da criança. Como o movimento exploratório e sensível é da ordem do brincar, não sendo economicamente produtivo, ele não tem utilidade. E no entanto, todas as forças germinativas estão ali, em agitação molecular. E sobre as potências da vida e do movimento Bergson tem o que dizer:
"Parece-me (...) verossímil que a consciência se entorpece quando não há mais movimento expontâneo e se exalta quando a vida se apóia na atividade livre."

Bergson, H. - Conferência proferida na Universidade de Birmingham, em 29 de maio de 1911 Citado por Marcos Lyra em Bergson: a consciência e a vida (publicado em O estrangeiro.net)

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O menino brinca sozinho: linhas de errância


"...[what] we are doing is living, and that we are not moving toward a goal, but are, so to sepeak, at the goal constantly and change with it, and the art, if is going to do anything useful, should open our eys to this fact". John Cage

(tradução livre: " [o que] nós estamos fazendo é vivo, e nós não estamos nos movendo em direção a um objetivo, mas estamos, por assim dizer, no objetivo mesmo e nos modificando com ele, e a rte, se ela tem alguma utilidade, deveria ser de abrir nossos olhos para este fato").

Referências:

John Cage foi um músico e performer que exercitou e difundiu a experimentação artística, influenciando não só a música mas todo o campo da cena contemporânea (dança, teatro, performance art).
Imagem: LCG - Luís Felipe brincando nas areias do Rio São Francisco, em Pirapora-MG.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O brincar: percurso de leituras (1)

Uma leitura que me marcou muito foi Hommo Ludens de Huizinga. Lembro-me de como fiquei tomado pela densidade do texto. O que me tocou em primeira mão foi a noção de que as instituições mais sérias, de certo modo, não passam de jogo. E em outra mão, marcou-me a noção de autonomia desse espaço que é o jogo:

"Ele [o jogo] se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância ele se nos apresenta: como um intervalo em nossa vida cotidiana."
Comecei a estudar Piaget. Foi por força da novidade que era o construtivismo na educação. Dois livros tiveram seu lugar: A formação do símbolo na criança e O juízo moral na criança.

Durante muito tempo esses dois textos fizeram minha cabeça sobre o significado do brincar na educação. As teorias sobre o sensório-motor, sobre o jogo simbólico etc., passaram a estruturar minha atenção sobre o brincar e o papel do teatro na educação. Tive por base a noção muito clara de que a criança pequena não faz teatro, que ela "não comunica" o símbolo, pois este seria pessoal, intuitivo, não generalisável. Depois, descobri que havia duas coisas distintas: a) jogo dramático e b) jogo teatral. A partir da introdução de Ingrid Dormine Koudela ao teatral de Viola Spolin, que retoma Piaget, passei a enfocar minha atuação por essa linha de pensamento. Por exemplo: entendia a iniciação ao teatro com as crianças que somente já estivessem aptas a realizar a "comunicação teatral", que seria combinação de jogo de regras e simbolismo (o aspecto mais inconsciente do segundo com a objetividade do primeiro).

Tudo isso, hoje, não se sustenta mais. Comunicação? Arte não é comunicação. Num momento, todo esse edifício ruiu de uma só vez. Como disse Juliana Saúde Barreto, arte-educadora e pesquisadora do teatro: depende da noção de teatro que está em jogo.

Depois li a escola russa: Luria e Vygotsky. Não pretendo sintetizar nenhum deles aqui, mas dizer muito mais em que eles me afetaram. As noções sobre as relações entre significado e objeto no brincar me parecem, ainda hoje, fecundas. Mas há uma visão equivocada sobre o brincar: este é tomado como uma espécie de atividade compensatória (Huizinga já havia demonstrado as limitações dessas concepções psicológicas do brincar), pois a criança brincaria de montar cavalo num cabo de vassoura porque não pode montar num cavalo real... Ora, não é nada disso. Essa comparação da criança - e de suas potências desejantes - em relação a um real a que teria que adaptar (Piaget também comunga das mesmas idéias adaptativas) expõe na verdade o agenciamento maquínico dessas teorias. Ou seja, supõe uma ciência e uma verdade ali onde apenas tratam a criança como um ser inferior e toda as forças desejantes na mesma ordem.

No meio disso, três autores forneceram contra-pontos essenciais para revidar o ataque racion
alista com um vitalismo alegre e potente: Gianni Rodari, Lapierre e Gilles Deleuze.

Gianni Rodari libertou-me,
com sua Gramática da fantasia, das amarras produzidas pelas formações teóricas que subjugavam o imaginário e a arte.

No meio disso, comecei a ler Lógica do sentido, de Gilles Deleuze. Ainda não estudara filosofia, mas o texto me trouxe um sopro de liberdade. No entanto, a minha formação filosófica (não tive cursos de Nietzsche e nem de Deleuze), acabou por corroborar a influência de Piaget e seu racionalismo.Somente anos mais tarde, no curso de mestrado em artes, voltei a Deleuze, que me tomou por inteiro, de um só golpe. Quanto à Lógica do sentido, ali estavam as intuições e forças que já haviam me reconduzido, no teatro-educação, às séries disjuntivas, à criação como acontecimento e singularidade, como ato de expressão, pois, é a partir de
Lewis Carrol que Deleuze afirma:

"Passar do outro lado do espelho é passar da relação de designação à relação de expressão".
O que tem consequências para a arte-educação e a defesa do brincar. O instrumentalismo pedagógico transforma teorias em procedimentos, subjugando inclusive a criação. Tais sistemas englobantes transformam toda a alteridade numa derivação de seus próprios agenciamentos. No caso, a passagem da designação à expressão é um dos caminhos para entender o papel singular do brincar e da arte na educação. Deleuze mostra, ainda, que
"O bom senso desempenha papel capital na determinação da significação. Mas não desempenha nenhum na doação de sentido; e isto porque o bom senso vem sempre em segundo lugar, porque a distribuição sedentária que ele opera pressupõe um outra distribuição, como o problema dos cercados supõe um espaço primeiro livre, aberto, ilimitado..."
Com Lapierre retomei aquilo que o brincar uma vez havia me dado: as potências alegres e desejantes, a importância de não culpabilizar o desejo, a prioridade do movimento e do tônus no trabalho com crianças (e com atores também).

\outra leitura importante foi A educação estética do homem, de Schiller por onde aprendi sobre o impulso formal e o impulso sensível - de como o brincar é uma combinação dos dois. Em decorrência, a Crítica da faculdade de julgar de Kant levou-me, mais uma vez, ao brincar como atividade cujo fins residem nela mesma. E com Kandinski, as linhas e sonoridades do plano expressivo.

Outras leituras perpassam esses caminhos. Por agora, somente um olhar sobre algumas delas.


quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Encontro em Cuiabá: a produção teatral para crianças

Estive em Cuiabá no dia 06.10 para discutir a Produção Teatral para Crianças, na Mostra Internacional de Teatro Infantil.

A minha apresentação teve por base as relações entre a produção cultural e a cultura da criança. Por que essa linha de tratamento? Entendo que a produção cultural não pode deixar de ser contextualizada: o significado da infância em nossa sociedade.

Portanto, apresentei como linha mestra o que Clarice Cohn chama de "a criança como sujeito cultural ativo e produtor de sentido sobre o mundo" (Antropologia da Criança, ed. Jorge Zahar).

Contexto: a criança como produtora de cultura

Esta abordagem traz, assim, uma "novidade" que, entretanto, encontra barreiras: a) por parte de um sistema de ensino que não consegue aceitar a criança fabuladora, isto é, a criança como produtora de cultura; b) por parte da indústria cultural que somente trata a criança como mera consumidora (e muito da produção teatral destinada a esse público vai nessa direção); c) pelo sistema da reprodução social, que insiste em ver a criança como o ser que "ainda não é", que deve ser objeto de investimentos para "ser" no futuro.

O espetáculo para crianças e a fabricação da infância

André Ferraz, criador e pesquisador teatral, cuja dissertação em mestrado tem dsicute o teatro para crianças do ponto de vista do ator, lembra no texto "A infância e o teatro infantil", que o espetáculo para adultos era, muitas vezes, em diversos contextos históricos, partilhado pelas crianças. Remonta-se, aqui, às teses de Philippe Arriés sobre a história social da infância. Em outras palavras, sobre a fabricação da infância, de como esta categoria foi produzida socialmente.

Tomei por foco, nessa segunda parte, a relação entre o mundo de cultura das crianças e o mundo de cultura compartilhado. Vejamos isso: o mundo de cultura das crianças é tomado como toda a produção de sentido que as crianças produzem nos seus contextos de vida. A cultura das ruas, como explicitado por Edmir Perrotti, é justamente um desses contextos. Não que tais espaços sejam vistos sem quaisquer relações com o mundo adulto, com as relações sociais. Antes disso, são espaços em que as crianças podem realizar trocas e interações entre si.

A cultura das ruas é expressão, assim, do mundo de cultura produzido pelas crianças. No entanto, com os processos de modernização e ampliação do capitalistmo por todos os âmbitos da vida, esse mundo de cultura, como explicita Perroti, sofre, cada vez mais, de um encolhimento sensível. Em contrapartida, a criança deixa de ser produtora de cultura para ser meramente consumidora.

Como se pode ver, a questão da produção cultural para crianças não pode ser dissociada deste contexto: o lugar da infância na nossa sociedade. No caso, como as crianças produzem sentido e como isso é mais ou menos valorizado socialmente

Já o mundo compartilhado é aquele em que adultos e crianças ainda não foram segmentados: o circo, as festas religiosas populares, os ritos e os mitos que são transmitidos pelas gerações (a contação de histórias, por exemplo).

Nesse momento, uma pausa para rever nosso conceito de cultura, sem o quê tudo o que dissemos se esfuma pelo ar. Cultura não como algo que a criança irá paulatinamente aprender, como se fosse uma tábula rasa. E nem como um valor social conferido a poucos objetos e pessoas. Vemos a cultura como todos os modos de fazer, sentir, pensar, criar e viver.

Ocorre, assim, uma série de trocas entre o mundo de cultura da criança e o mundo de cultura compartilhado (festividades, ritos, mitos transmitidos, circo etc.). Entretanto, tais espaços de compartilhamento foram se modificando, visto que no processo de modernização capitalista, a criança foi sendo investida, cada vez mais, como mera consumidora. São outros "ritos" que se impôem, mas que impôem ao sujeito o próprio sentido.

Paralelamente, a criança passa a viver nos espaços de confinamento, como esclarece Perrotti: toda a sua produção de sentido vai se dar em creches, escolas, cursos especializados etc. Não que isso seja algo ruim, mas apenas que é diferente e produz, afinal, outros agenciamentos desejantes. Além disso, as políticas de proteção da infância passam a reivindicar justamente os cuidados especializados etc. O mundo de cultura da infância caractetizado pela cultura das ruas encolhe cada vez mais. E, com isso, surgem produtos destinados especialmente às crianças. Um grande mercado produtor de cultura.

Nesse ponto, podemos traçar rapidamente uma taxonomia dos espetáculos produzidos para as crianças: a) aqueles que visam a criança de modo instrumentalizado, que não consideram a consideram como produtora de cultura (grande parte da produção audiovisual, dos shows televisos etc vão nessa direção e muito do teatro também); b) aqueles que seguem a trilha acima, mas degradam cada vez mais a condição do teatro infantil, realizando cópias dos roteiros do cinema de sucesso etc., não considerando a produção nem do ponto de vista qualitativo (investimento em conteúdo original relevante) e nem do ponto de vista quantitativo (investimento dos valores agregados do mercado de arte profissional); c) os que pensam criativamente o mercado para crianças, buscando entretenimento de qualidade, valorizando a inteligência das crianças; d) aqueles que pensam e criam obras artísticas sem a focalização acima ("C"), mas que, como dizem Lygia Bojunga Nunes, produzem criações que não "desagradam as crianças"; e) e, por fim, as criações que, na trilha "d", têm por tema a infância e sua cultura lúdica, trazendo traços de memórias dos criadores, valorizando a cultura lúdica da infância.

Note-se que as linhas "c", "d" e "e" operam, ainda, por misturas. Essa breve taxonomia visa apenas delinear - colocar em linhas - modos de produzir e criar espetáculos de artes cênicas para crianças.

A conexão mundo de cultura da infância -

Podemos, agora, falar um pouco dessas criações que entram no mercado como espetáculos para crianças mas que não se curvam à lógica instrumental do mesmo. Para tanto, tomo como exemplo e inspiração maior, o filme Palhaços, de Federico Fellini. Trata-se de uma belíssima mistura de documentário e ficção no qual o mundo dos palhaços é apresentado com todo o seu delírio, traçando relações, ainda, com a infância do próprio Fellini. Vemos o menino deslumbrado com o mundo do circo e dos palhaços, mostrando como estes eram vistos também sob o aspecto de personagens marginais que habitaram também a infância do cineasta. E aqui chamo a atenção para os fenômenos de borda e vizinhança, que barrados pelo mundo adulto da produtividade, trazem imagens e afecções de sensibilidades outras. A cultura da infância, quando ainda nos espaços não confinados da cultura das ruas, interagia com esse mundo marginal, fabuloso, muitas vezes inventado na própria imaginação (histórias estranhas que povoam o universo infantil).

Por fim, abordei duas criações: De banda pra lua, do grupo mineiro Armatrux, com direção de Eid Ribeiro e Roda pé, da Cia Balangandança de São Paulo. Exemplos de produção cênica para crianças que respeitam sua inteligência e prolongam, por outros meios (do espetáculo e do mercado cultural) a cultura lúdica da infância e seu modo de produzir sentido.

Depois disso, discutimos com os artistas e educadores, numa mesa redonda, o teatro e a escola.

domingo, 14 de setembro de 2008

Cidade do Recife: cultura da criança e educação infantil

Estive na cidade do Recife, nos dias 09 e 10 de setembro, para participar de um encontro de Formação Continuada de Auxiliares de Desenvolvimento Infantil, promovida pela Secretaria Municipal de Educação.

Foram 02 dias de conferências sobre o tema "Traçando o mapa do brincar: trajetos, ritmos e rotas imaginárias", acompanhadas de uma oficina. É a terceria vez que vou à cidade do Recife e arredores (Camaragibe e Cidade do Cabo de Santo Agostinho), convidado a contribuir nos projetos e programas de educação infantil.

Nas duas visitas, falei sobre o Brincar como um modo de habitar o mundo. Agora, desta vez, aprofundei mais na questão do brincar como um direito da criança e como um currículo implícito que devemos tornar explícito. Na nossa linha de defesa, a criança deve ser entendida como um sujeito cultural, que deve ser valorizada como produtora de um saber, acolhida no presente, e não simplesmente como um ser de aprendizagem para um futuro desenvolvimento..

Tive um encontro também com estudantes do Curso de Pedagogia, e pude compartilhar de bons momentos com algumas pessoas generosas e críticas, a respeito do brincar e da educação infantil.

Deste modo, estamos mostrando a importância do brincar para o currículo exatamente por conter, informalmente, os elementos que mais tarde irão ser formalizadas pela escola. A cultura do brincar, em conexão com a cultura dos cuidados e com a cultura popular foram um dos tópicos analisados.

Quanto à oficina, foi proposta uma ação de ocupação dos espaços da Fundação Joaquim Nabuco, local onde se realizaram os econtros com os auxiliares de desenvolvimento infantil. Fiquei feliz de ver como as pessoas se entregavam sem medo ao processo, explorando espaços e tempos. Foi uma experiência rápída, mas que proporcionou alguns elementos básicos sobre os modos comos as crianças ocupam espaços. Propus um bem sensorial, na linha da performance art.

Para mim, o mais legal
é estar numa região que possui uma impressionante cultura popular, sem falar nos brincantes. Espero que os profissionais da educação compreendam a maravilha que é essa cultura viva.

No mais, as amizades que fiz ao longos desses anos, em cada visita a Recife: afetos que passam pelo olhar-criança. O que fez falta: observar crianças brincando.

Em breve, publicarei uma síntese da conferência neste blog.

sábado, 6 de setembro de 2008

O menino é o ancestral 2

Sigo o meu amigo que segue o seu filho de um ano e meio no Parque Municipal de Belo Horizonte. Ele é músico, ator e brincante.

Tempos e espaços de pai e filho juntos. Estamos no âmbito dos cuidados, onde um macho também cuida da criança. E o que um e outro fazem? Let it be (deixa rolar). Como assim? O pai ficar perto, observa. O menino escolhe a partir dos acasos que entram no seu campo perceptivo, sensorial e motriz. Melhor dizendo, faz nomadismos. O tempo todo a criança já está fazendo o seu território andar. O mundo sob seus pés se põe em movimento. Mesmo que esteja parada.

A criança pára em movimento: há sempre desejo. E quando não há intenção direcionada, há o que meu amigo e eu chamamos de errância: olha em volta, deixa que as coisas possam emergir de um campo de virtualidade e produzam, por si mesmas, novas ocorrências. Vê o banco do parque. Quer subir. Esforça-se. O pai o ajuda vocalmente - com sons de esforços e encorajamentos - mais deixa que o menino o faz. E junto com ele comemora a conquista.

Aqui está o primeiro lance: o pai/a mãe - aquele que cuida - recebe, aceita, valoriza e encoraja. Tudo o que o menino faz é de interesse do pai. Observa cada solução de problemas motores (o pezinho preso no ato de subir, a dificuldade de soltá-lo etc.). E com essa aceitação, o pai demora-se no tempo e no espaço. Permite-se viver sem projeções, sem finalidades. Sem pressas. E quem ensina isso?

O menino, o ancestral.

Referências:

O menino é o ancestral
Amar e Brincar - fundamentos esquecidos do humano

domingo, 10 de agosto de 2008

Brincar: reserva do porvir

A cultura lúdica da infância é a nossa reserva de porvir. E uma sociedade será mais ou menos aberta à renovação na medida em que consegue acolher as crianças e seu mundo de experiências. Mesmo que seja na lembrança.

De Miguilim, de Guimarães Rosa, guardo entre outras coisas o traço de um menino cuja dor esbarra na dor dos adultos cercados na sua própria ignorância. Um pai violento e uma mãe que sempre olha longe. Talvez por isso Gilles Deleuze diz que a infância é também triste: estamos todos submetidos ao outro.

Quando senti que eu estava em uma situação que não cabia de tanto sofrimento, eu guardei a foto de menino na escola que ficava em cima da mesa. Tirar o menino de lá foi meu primeiro gesto...

O que pode nos guiar, artistas, educadores, gestores públicos, empreendedores em relação à infância? Uma única coisa: acolhimento do porvir- isso o que a criança traz.

Por um ardil da natureza a criança guarda no brincar o que os adultos largam à margem, enquanto tentam dominar e submeter a si mesmos, a natureza e os outros.

Isso significa acolher a presença do outro. Crianças vivem no presente contínuo do brincar: elas nos ensinam o caminho. Disso, não restam dúvidas. Mas, há espaço para o brincar em sua vida, na sua escola, no seu mundo? Ou tais lugares já estão previamente definidos, seguindo padrões curriculares, pistas já percorridas, horizontes pré-fabricados?

sábado, 26 de julho de 2008

Do brincar e dos fins - I

Ando pelos becos da Vila Nossa Senhora de Fátima, em Belo Horizonte. É sábado de manhã e uma menina de uns doze anos reúne em sua volta um grupo de meninas menores. Elas brincam de boneca e de fazer comida com terra. Enchem as vasilhas de brinquedo, fazendo formas. Percebe-se claramente nessa atividade a preocupação da menina mais velha em cuidar das crianças menores. Possivelmente esta é uma tarefa doméstica, isto é, não lúdica, mas concreta, bem real. Talvez o fim esteja lá: é preciso tomar conta das menores. E é justamente nisso que entra o espírito lúdico: o fim é transformado em meios que se dilatam através do envolvimento sensível com a experiência (mexer com terra, criar um cenário doméstico), satisfazendo necessidades que a finalidade posta (tomar conta das irmãs menores) não pode satisfazer. Necessidades que dizem respeito ao desenvolvimento daquelas crianças, inclusive da mais velha.. A brincadeira, portanto, passa a ocupar o centro da atividade.

Nessa visada do brincar através da teleologia das ações humanas, a utilidade de determinado produto que delas pode resultar é outro ponto de destaque. Um marceneiro faz uma cama para que se possa nela dormir, podendo igualmente servir de valor de troca. Uma criança faz uma cama para sua boneca dormir - não tem esta ação de preparar ou de fazer a “cama” uma finalidade extrínseca ao jogo. Diferentemente do adulto que, ao fabrincar um objeto, elege os meios para se atingir os fins, a criança faz dos meios o fim. O filósofo Emanuel Kant, ao abordar o juízo de gosto, fala de uma finalidade sem fim, de uma finalidade puramente formal. Uma finalidade formal não serve para nada... Serve para criar – serve para brincar.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Blocos de infância I

“... a criança persiste mais tempo e menos
envergonhada no artista que em qualquer outra classe, e muitos artistas
sentem-se felizes por isso”.

Eric Bentley

domingo, 13 de julho de 2008

Jogo sem regras

A diferença entre brincar e jogar é um tema recorrente. O video-artista e fabricador de poéticas outras, Marcelo Kraiser, falou-me de um jogo que não teria regras.

A conversa era sobre improvisação. Marcelo é co-idealizador, comigo, do projeto Improvisões, que proporciona a interação ao vivo, diante do público, de artistas de meio heterogêneos (imagem, corpo e som), numa criação não hierárquica.

No caso do jogo sem regras, Kraiser refere-se a artistas que compõem numa forma de jogo. Algo como apostas que eles realizam e nas quais se arriscam.

Lembro do controle, jogo de bola que pode ser praticado sozinho ou com parceiros. Você não deve deixar a bola parada no chão, lembrando que se trata de um jogo de futebol (sem colocar a mão na bola e, no caso, sem goleiro). Essa a sua aposta. Atira com o pé a bola na parede, que irá ser rebatida como se fosse um adversário ou parceiro, você a apanha com o pé, ou outra parte do corpo e continua o controle. Aliás, filósofo Gadamer, em Verdade e método, aborda o jogo, lembrando que a bola só é interessante porque é redonda, fungindo, por isso, ao nosso controle.

O que quer dizer um jogo sem regras? O jogo controle teria uma regra básica: não deixar a bola parar no chão. As regras são implícitas aos jogos, como fica? Mas existem regras e regras.

Mais do que uma regra, é uma aposta, segundo Marcelo Kraiser. A regra de que se fala aqui é aquela que prediz o resultado. Ela direciona a experiência numa estruturação determinada. Algus jogos são chamados, assim, de jogos de regra, como Piaget, um dos estudiosos classifica. No entanto, ele mesmo fala de um jogo de exercício (um jogo sensório-motor baseado na pura repetição) e no jogo simbólico (no qual se dá uma vivência ficcional). Tais classificações, entretanto, não me satisfazem mais, até porque elas estão montadas numa estrutura de desenvolvimento do sujeito cognitivo.


O jogo de regras, entretanto, é o mais difundido pelos sistemas pedagógicos, justo pelo seu caráter de controle e, posso dizer, moral. Durante alguns anos acreditei nisso, imagine! Os sistemas de educação te formam para apreender as coiasas por essas vias. Mas foi o brincar exploratório e sensível que me libertou dessa junção entre consciência moral e jogo. E não é atoa que recusei os jogos teatrais como processo de treinamento e criação em teatro e, principalmente, em arte-educação.

Portanto, mais fecundo para a criação artística e a cultura do brincar em suas linhas de errância, é o jogo como aposta. Eu projeto algo numa certa direção (o que vai), mas a resposta, não está no meu controle (o que vem). Algo a ver com o desejo como aposta. E aí, entre uma coisa e outra, as variações são infinitas.


terça-feira, 17 de junho de 2008

O menino é o ancestral

Vejo o meu amigo com o filho pequeno, com ano e meio de idade. O pai é um brincante, artista e pesquisador.

Nômades, os dois. O menino às costas, o pai andando pelas ruas e avenidas. A cidade corre com a pressa dos motores e corações acelerados, enquanto os dois a atravessam oblíqua e panoramicamente.

Quando no chão, o menino pode explorar o mundo nos seus próprios pés. O pai ri o tempo todo. E o menino distancia-se sob o olhar seguro do pai - caminha pelas bordas e volta para ir mais uma vez ao encontro do novo. Juntos e separados. O menino sempre traz notícias do mundo. Produz acontecimentos. Inventaria sensações. Dobra paisagens. Cria espaços e durações. Trajetos que são linhas de errância.

E o pai pesquisa, estuda, maravilha-se com o que o filho traz e fabrica nessa exploração sensível.

É assim que tem de ser: o menino é o ancestral.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Tempo de brincar de quê?





A infância tornou-se, em determinados momentos históricos e em alguns contextos sociais, detentora da memória lúdica humana. Ela conquistou essa memória porque os adultos estavam por demais ocupados com a produção e a reprodução da vida, deixando ao mesmo tempo às crianças um tempo mais livre, distante da sua vigilância.

Além de serem depositárias de uma memória que os adultos não podem, nas sociedades industriais, exercitá-la, as crianças reinventam a história humana. Inventam o tempo em que os seres humanos se envolvem corporalmente com o mundo. A criança fabrica o sentido e explora os sentidos antes de ficar memorizando abstrações. Entra em contato com a terra, deixando-a deslizar pelas mãos, sentindo o seu escoamento até fazer um filete comprido, quando é mais fina. Ou então socar, ajuntar, atirar ou formar, se é mais grossa e úmida. Muitos artistas continuam fazendo e por isso eles guardam uma estranha e aparentemente secreta sensação de felicidade e liberdade.

As brincadeiras infantis relacionam-se em muitos casos com o tempo, com o seu caráter de estação. Quando o que fazemos interage com o mundo físico natural e a sensibilidade não está embotada, a cada época uma onda varre o território e todos testemunham algo inelutável: é tempo disso, ou daquilo...

O brinquedo surge como interação com o entorno: em época de vento, empina-se pipa, em época de chuvas, joga-se finca, na seca o jogo de bolinhas de gude... Cada um depende de um tempo, que define as condições do território. Perguntei, no CIAME Santa Maria (1), para um grupo de pré-adolescentes, qual o brinquedo que se jogava em época de chuva. Acreditei que, num mundo de tanto cimento, ninguém acertaria. Imediatamente uma menina disse: finca!

O jogo de finca é feito por dois adversários que, com um objeto de ferro pontudo, fazem marcas no chão úmido, riscando de ponto a ponto, de modo a estrangular ou fechar o adversário, impedindo-o de movimentar-se. Para isso exige-se as condições concretas de um terreno bem definido: o chão recentemente molhado pela chuva, não muito mole, consistente o suficiente para segurar o ferro pontudo (ou facas, dependendo do caso) e macio para ser riscado e deixar marcas definidas. A poeira as apagaria e o chão seco faria o ferro pular sem fincar no chão. Trata-se de um jogo de pontarias, como o gesto de atirar facas.

O jogo principia pela disputa de quem joga primeiro (2). Para isso risca-se o chão horizontalmente, delimitando que dali ninguém passa. À frente, numa distância razoável e desafiadora, risca-se um traço vertical. Os jogadores atiram suas fincas: quem acertar no fio do traço ou mais próximo dele começa o jogo. Cada um desenha sua casa, feita por um triângulo riscado no chão. Começa atirando a finca dentro da casa e estabelecendo o ponto inicial. Sem poder ultrapassar aquele ponto, mantendo os pés sempre atrás dele, o jogador tentará atirar sua finca o mais longe possível, em direção à casa do adversário. Se a finca se firmar no chão, ele traça um risco que vai desse primeiro ponto dentro da sua casa até o ponto atingido. Se acerta, ele não pára de jogar, até que erre, cedendo a vez ao outro. Cada jogador deve, além disso, tentar atingir o ponto o mais próximo da sua linha, tentando fechar os caminhos do adversário e obter sua derrota o mais rápido possível. Ninguém pode cortar linhas. Se alguém contorna a casa do adversário e chega à sua própria casa, é vencedor. Lembro-me de que era permitido furar a linha do outro ou própria por um golpe de lado, cavando uma espécie de subterrâneo, mas sem levantar muita terra, deitar demais a finca ou esburacar os riscados.

Nesse jogo, os meninos procuravam pedaços de ferro das construções, cortavam e ficavam horas a fio afiando-os contra o cimento, até criar uma bela ponta. Esse era o nosso meio: as construções surgiam por todos os lados num bairro onde o lado selvagem e não explorado era ainda forte. Vi, na barragem Santa Lúcia, no começo dos anos 1990, quando ainda não estava pronta, um senhor fabricar para mim uma finca diferente: um pedaço de madeira (cinco dedos de um cabo de vassoura) com um prego na ponta. Assim, cada finca depende do material disponível pelo entorno. O jogo de finca requer um mundo próprio, que deve incluir a temporada de chuvas, do ponto de vista do meio físico, a existência de terrenos baldios e disponibilidade da infância para o tempo livre. As chuvas continuam, talvez um pouco perturbadas, mas os terrenos descobertos são cada vez mais raros e a infância não vive, de modo geral, em espaços públicos. O mundo de cultura da infância, com sua memória de invenções populares, encolhe-se cada vez mais.

A brincadeira de pipa envolve as condições climáticas de ventos constantes. Linhas tipo 10 e manivelas de madeira, fabricadas artesanalmente, já fizeram parte da aventura. Hoje, as manivelas estão cada vez mais ausentes, sendo substituídas por latas em que se enrolam as linhas. Os golpes nos vôos são mais usados, em contrapartida, quando as distâncias maiores e mais contemplativas eram mais consideradas nas manivelas.

Já as bolinhas de gude demandam o terreno seco, de poeira. A terra molhada se adere às bolinhas e impede seu livre curso. A terra seca, pelo contrário, solta pó de cada lance, sem aderir. Alguns jogam com buracos feitos com o calcanhar na terra. Nesse jogo, em que o objetivo é obter as bolinhas do adversário, demora-se num roteiro de regras complexas, de modo que o tempo se dilata e as habilidades se desenvolvem.

As crianças e adolescentes, principalmente estes últimos, quando podem brincar em espaços livres, desenvolvem uma relação sensível com o entorno que foge aos ditames da produtividade adulta. São nômades e caçadores, em busca de algo inusitado, que sirva para a aventura. O grupo cria sua justiça distributiva, ao compartilhar os produtos dos achados, ao colocar na roda as descobertas. Favorece o comércio com base na troca, no escambo.

Trata-se, desse modo, de uma outra economia. Tudo parte, sem dúvida, do corpo e das necessidades de conhecimento sensível. Os elementos são selecionados no entorno, seja de origem natural ou proveniente reaproveitamento de refugo industrial ou doméstico. Os rolimãs, sobras de rolamentos de veículos, disputadas no ferro-velho, deram origens aos carrinhos de madeira, que aproveitavam os calçamentos. A roda, por outro lado, com um arco de ferro guiando ou simplesmente sendo girada com as mãos diretamente, atravessaram épocas e mundos, dependendo o material daquilo que se torna disponível (3). Disso surge o poético: reunião do que não serve para nada, mas que sob um novo olhar configura um novo mundo. O brincar fabrica mundos. Enquanto pensávamos sobre brinquedos, ao sairmos do CIAME para irmos embora, um menino, que provavelmente já havia chegado em casa, passa correndo com um brinquedo inventado por ele. Era uma roda solta de um velocípede de plástico ou de brinquedo industrializado similar, cujo centro foi trespassada por um fio ou cabo de plástico, sendo que o menino girava a roda em alta velocidade.

O brinquedo é o mecanismo na sua função poética – ou seja, para além da sua função prática. Um brinquedo serve para brincar: para desenvolver habilidades que fogem ao controle do olhar produtivo, seja pedagógico ou econômico. Por isso o brinquedo pedagógico é redundante ou falso: não foi inventado por meninos e meninas. Não responde a uma cultura que vive de trocas sensíveis e imaginativas com o entorno. Não é memória dos povos. Não serve para encontrar tesouros de piratas ou bandidos.

Brinquedos e brincadeiras são coisas nos tempos e nos lugares. As crianças inventam seus territórios, fabricam mundos. São mundos achados e inventados. E eles estão no entorno, no nosso meio físico e social. Os adultos estão muito ocupados para encontrar coisas pelo caminho – tudo para eles é desvio. Já para os meninos e meninas, se para eles o mundo ainda é generoso, acabam achando coisas. Que parecem, misteriosamente, pertencer a um outro lugar, reluzindo em meio aos refugos como pequenos tesouros enterrados na sensibilidade do mundo. Deixam de ser meros utilitários que dormem no abandono e passam a pertencer a um tempo em que sobreviver e criar não são coisas necessariamente tão opostas.



Referências:

(1) Novembro de 1999 – Belo Horizonte. Os CIAMES eram espaços nos quais as crianças ficavam em horários que não o escolar. Houve um desmanche dessa política, principalmente porque os CIAMES não defendiam sua missão e qualificação em relação às crianças e jovens. No entanto, num contexto de pobresa e violência, alguns CIAMES desempenhavam papel importante, abrigando as crianças e alimentando-as, enquanto os pais trabalhavam. O aspecto mais frágil fica por conta dos conteúdos, da falta de qualificação do pessoal pedagógico e do pequeno ou quase nulo investimento do Estado.

(2) Falo evidentemente de minha experiência pessoal, em Belo Horizonte, no bairro Serra, nos anos de 1960. No CIAME Santa Maria (Nov/1999), uma menina me disse que jogava assim mas também de outro modo: ela fazia um quadrado subdivido em quadrados menores. Neles, tentava-se acertar a finca.

(3) Devo essa observação sobre os arcos a Lídia Ortélio.

Imagem: Portinari

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Jornal Dimensão: o teatro como exercício de liberdade

O jornal eletrônico Dimensão acaba de publicar uma entrevista comigo sobre a questão do teatro na escola intitulada Exercício de liberdade.

A edição n. 05 Ano I de março/abril de 20008 apresenta artigos como:

- Saci Pererê fez aniversário - de Cilza Bignoto
- Um lobatinho entre nós - de Else Mendes da Silva
- Brincando de ser folclorista - de Celso Sisto
- De olho nas estrelas - de Hélio Diógenes

Há, ainda, entre outros temas e artigos, uma reportagem de Bruna Oliveira sobre o trabalho com o teatro na escola, realizado pelo artista e educador Cauê Salles e alunos do Instituto Libertas: O Instituto libertas apresenta...

domingo, 30 de março de 2008

Brincar: tekné e poiesis

O brincar é uma tekné e uma poiesis

O brincar é algo que antecede o brinquedo. Por isso digo que ele é uma tekné. Walter Benjamim já havia antevisto a imanência própria desse ato tão pouco compreendido pelos adultos. Não pelo fato de a infância permanecer algo inacessível, uma espontaneidade para sempre perdida. Mais do que isso, nós adultos tendemos a nos acostumar aos procedimentos que nos sujeitam – que produzem nossas experiências de vida ou de subjetivação. A criança está mais submetida, mas os adultos estão mais comprometidos com a produção do real.

Para quem tem a infância por tema recorrente, é duro perceber como as crianças estão limitadas aos contornos do comprometimento adulto com as formas dominantes de sociabilidade. Fugir de tais contornos, moldes e aprisionamentos, eis o que o brincar nos ensina. E a criança fabula também para fugir de tais cercos, tristezas e fechamentos do mapa do viver. Mas a fabulação, que é um modo de brincar, não é produto de uma limitação, mas antes a invenção primeira: uma pedra que chapisca na água é uma coisa que cada um aprende por si ou vendo o outro fazer. Há, no brincar, um fluxo de sensações a serem vividas. Um ardil da vida diante do ardil da razão estabelecida. Que tais estratégias encontrem nas crianças seus caminhos, é coisa que faz sentido.

Obviamente que o brincar não é um privilégio de crianças. Todas as culturas que deixam respirar a vida para além das resignações, por baixo, pelas beiradas ou por alguma brecha, têm o brincar em conta. As culturas do Brasil trazem essas vertentes de ludicidade: as capoeiras, os brincantes, as músicas, as festividades, danças e teatralidades, as belezas que se expressam em bom humor e flexibilidade, são todas essas culturas do brincar. No entanto, é a infância que armazena tais provisões, pois o mundo adulto sempre sofre mais diretamente a moldagem proveniente do trabalho, do esforço, do escopo das subjetivações que precisam segmentar, parar, identificar, reter uma energia livre, que é a da vida.

São também culturas permissivas, em que a mulher tem papel importante, que experimenta o feminino para além do que os machos adultos definiram como a experiência possível. Ou que tem, em conta, por outro viés, o visitante como elemento acolhedor do menino/menina, travando cumplicidades poéticas. Mas isso são outras histórias. O importante, aqui, é lembrar que a infância tem no brincar sua ferramenta primeira – sua tekné de entrada no mundo. Nesse sentido, o brincar é, também, uma poiesis (fabricação de mundos). E uma cultura sem infância é uma cultura fadada a morrer de tristeza. Se há alguma nostalgia, é a de uma vida de pequenas explosões de acontecimentos em comparação com a mesmice de um cotidiano pré-fabricado.

É comum pensar que o brincar resolve-se numa vazão bruta de energia. Para uma cultura em que a libido é somente pensada como desperdício ou alívio imediato, quando não, controle sobre a vida livre dos outros, torna-se penoso, senão um desdém, imaginar outro modo de funcionamento para a ação lúdica. Ora, quando brinca o menino/menina abre um mundo e inventa a si mesmo o tempo todo, sempre mudando. Quantas vezes não ouvimos, mesmo, educadores dizerem: - as crianças precisam extravasar a energia acumulada!. De fato, energia retesada quer espaço. Mas não ao modo como pensam os adultos. Talvez, uma dos motivos seja o fato de o brincar estar em produção incessante. Acompanhar uma criança pequena desnorteia qualquer adulto. A vida, ali, não cessa de pular, de voltar, de encontrar o repouso no movimento e o movimento no repouso, fazendo conexões de sentido no meio do disparate e do imprevisto. Com tanta oferta, imaginam os adultos que o brincar vale muito pouco. Esse é um grande engano. O brincar é pura sofisticação. Isso quer dizer que quando brincamos nós produzimos uma tapeçaria, um vitral, uma sinfonia de acasos, errâncias e outras poéticas do efêmero. E que podem se resolver num objeto, que, então, chamamos de brinquedo. Mas o ato de brincar não depende de objetos especiais: qualquer coisa pode ser utilizada.

Tarefa primeira para educadores e artistas livres e descomprometidos: aprender a ver o brincar. Para isso, é preciso muita disciplina. O espontâneo não come à nossa mão sem muito exercício. Ensinar os educadores a demorar-se sobre as brincadeiras das crianças é a tarefa primeira. Ter em mãos uma caderneta de campo para anotações, a tarefa seguinte. E anotar muito. A partir disso, de um olhar não preconceituoso, acolhedor e gentil, pode-se começar a entender o brincar e a sua importante função na educação infantil e no aprimoramento da vida no planeta Terra. Outro detalhe: não se avexe, brinque também!

Um conhecimento exploratório e sensível

Quando brincam as crianças estão conhecendo o mundo de um modo exploratório e sensível. Porém, seria um equívoco pensar o brincar em termos de pura cognição. Há muitas e muitas linhas e planos perpassando a atividade que encontramos entre as crianças. Algo que se pode encontrar entre os adultos quando estes se vêem livres do julgo do esforço voltado a fins, a que chamamos de trabalho. Em primeiro lugar, trata-se de uma polimorfia que não entende a hierarquização da experiência de vida. É possível que uma criança pequena persiga uma experiência sonora e a veja se transformar num desenho corporal ou num risco de giz sobre o chão. Há linhas no brincar. Para os adultos, isso pode significar não uma volta a um ser criança, mas àquilo que Deleuze chama de bloco de infância.

Chamo de exploratória a atividade que se permite seguir e surpreende-ser a todo instante. O meu foco é o brincar corporal. No entanto, entendo o brincar num sentido amplo, já que a própria criança passa da utilização de um objeto para uma atividade em que o corpo é a linha que se faz seguir. Veja o curso de um filete de água: ele flui. É disso que se trata precisamente quando se fala em fazer seguir. Obviamente que a criança não está numa dimensão totalmente exploratória o tempo todo. Há linhas de conservação, de repetição. Mas isso já é uma nova exploração: um ritmo, um tempo dedicado a um ir e vir sem parar. Um estado que é instaurado a partir disso. Quando uma criança corre em círculos, ou quando balança sem parar, quando repete indefinidamente – já se trata de explorar uma permanência que, de todo jeito, irá variar, mas a partir de elementos quase imperceptíveis.

O brincar, quando é exploratório, não conhece os objetos que chamamos de brinquedos institucionalizados. Refiro-me, aqui, à uma cultura da criança em oposição à cultura de mercado que procura impingir seus produtos. Seu modo pré-fabricado e experimentar o mundo. Nisso erra as pedagogias que oferecem às crianças atividades dirigidas, como os jogos em que se deve perseguir um fim extrínseco ou contornos já feitos, nos quais o resultado foi previsto de antemão. Nisso o brincar exploratório distingue-se do jogo de regaras. Neste último, já se tem por antecedência aonde se quer chegar. No plano exploratório, que é um plano de experimentação, que ocorre emerge da situação, do campo de percepção.

sábado, 22 de março de 2008

Lembrança do brincar: uma vivência lúdica de adultos ou uma brecha no cotidiano

Fui ver o pôr-do-sol num terreno baldio, na região montanhosa de Belo Horizonte, de onde se tem uma linda vista da cidade. De repente, chega um ônibus velho, caindo aos pedaços, e dele desce um grupo de operários com seus macacões sujos de graxa. Desceram já chutando uma bola, demarcando os gols e o campo. Nada verbalizado ou discutido - o corpo de cada um sabia quais eram os procedimentos rituais. O jogo começou em segundos, explosivo, quente e ágil. Naquele pôr-do-sol adultos brincavam felizes, aos gritos de alegria. Importava o corpo buscar o gesto preciso, driblar o outro, passar a bola, fazer gol. Não passaram vinte minutos e eles já estavam dentro do velho ônibus, que arrancava rapidamente e desaparecia na estrada. Tudo voltava a ser silêncio e quietude.

Referências:
Observação realizada no meio da década de 70 do século XX.

terça-feira, 18 de março de 2008

A criança fabuladora

A sala de visitas: entre o vedetismo e o confinamento

Na minha infância, a sala de visitas sempre foi uma tortura, principalmente quando não havia meninos com quem brincar: a obrigação de ficar quieto, ouvindo a conversa de adultos era puro sofrimento. As horas nunca passam numa situação dessas. O pior mesmo ocorre quando pediam para a gente demonstrar isso ou aquilo – é de doer.

Algumas crianças conseguem se sair bem na sala de visitas, em vez de afundarem de vez no sofá, ou se sentirem constrangidas com a demanda dos adultos para demonstrarem alguma coisa. Apresentam canções ou dançam, ou ainda repetem aqueles gestos considerados interessantes, conseguindo afinal se expressar de acordo com o jogo adulto.

Essa situação da sala de visitas não é muito comum hoje, numa sociedade mais permissiva, onde, além disso, a televisão toma conta em geral das salas e não deixa ninguém conversar direito. Porém, essa metáfora serve para demonstrar dois padrões possíveis de resposta às demandas adultas por demonstrações: um tipo de resposta é o caminho da timidez, o outro do vedetismo. Quando se pensa em teatro, muitas pessoas imaginam a criança desse segundo padrão, possuidora de um “talento”, “dom para a arte”. Associam arte, espontaneidade e vedetismo. A outra criança, confinada em si mesma, não será considerada “talentosa”, principalmente para as artes cênicas. Mesmo que a sala de visitas tenha mudado ao longo dos tempos, não mudou muito a atitude fundamental: a referência é cada vez mais o show, a habilidade para fazer alguma coisa na frente dos outros, num jogo de exibicionismo..

A criança como fabulista: viver é narrar

Durante muito tempo as crianças foram vistas como destituídas de cultura própria. Elas tornaram-se, nas sociedades modernas, objetos de investimento econômico. São preparadas para adquirir as capacidades e habilidades requeridas pela civilização industrial, cujo paradigma maior é o trabalho separado do lúdico. Recentemente, como demarcam os Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente, percebemos que se trata de um sujeito, um sujeito cultural antes de tudo.

E o que a criança traz no mundo de cultura? Depende do contexto. Há crianças que trabalham com os pais, mas não num trabalho em que são exploradas, e sim numa relação de complementaridade. Há um processo de interação física e verbal nas sociedades arcaicas e, podemos dizer, de resistência cultural. O trabalho desses adultos também é lúdico e não poderia deixar de ser: as forças da natureza e as forças da sociabilidade não podem ser tomadas somente de modo instrumental. A sobrevivência, nessas sociedades, não se reduz à utilização dos recursos naturais e da força social como meios para se atingir fins. Viver é narrar.

Defendo que a cultura lúdica da criança tornou-se meio de conservação e transmissão de uma necessidade humana básica: a de experimentar a vida para além dos ditames da sobrevivência.

Desse modo, com a separação entre lazer e trabalho, a infância, enquanto pôde dedicar-se ao lúdico, tornou-se depositária daquilo que os adultos perdiam quando se inseriam no mundo do trabalho. A cultura da infância tornou-se assim um elo de ligação entre as gerações e a cultura lúdica da humanidade.

Toda criança é uma fabulista, ou não poderia se entender como sujeito, construir-se como tal. E tudo começa com movimento e som. Quando vejo um menino de 04 anos correr no pátio da escola, subir num degrau, abrir os braços para o espaço, fechá-los e voltar a correr, isso me enche de uma coisa maravilhosa: vejo um poeta das ações físicas e me alimento de sua narrativa. O cosmos, ali, se concentra naquele menino. Ele fala do lugar da gente nesse mundo. Que é sempre o lugar de um narrador, coletivo ou individual. Todo o seu corpo parece dizer: “olha como eu sinto e concebo a vida...”

Esse não é o lugar do vedetismo. Faço aqui uma conexão com a atividade expressiva de orientação interna, de que falava o criador e pesquisador tetral Jerzy Grotowski. A brincadeira exploratória e sensível da criança é uma carta muitas vezes rabiscada, na qual se investe trajetos de afetos e percepções.

Quando brincamos, realizamos uma experiência. O espaço, o outro, a força da gravidade, a linguagem dos signos escritos ou dos ícones, a sonoridade, tudo é elemento de experiência sensível.

No entanto, valoriza-se ainda muito pouco essa dimensão fabulista de cada criança e do potencial proporcionado pelo lúdico – esquecem que cada criança, como cada ser humano potencialmente, é um ser poético. Porém, se nas sociedades industriais a criança, enquanto objeto de investimento econômico, podia brincar nas horas vagas e criar seu mundo de cultura, nas sociedades pós-industriais a criança não mais dispõe desse espaço, pois agora ela é consumidora em potencial. Inventa-se, para consumo, os modos de brincar e os brinquedos. Em troca surge um mundo sem experiência, de ausências preenchidas ruidosa e ostensivamente. Há um movimento, entretanto, de busca da cultura lúdica da infância, principalmente nas artes. O teatro-experiência alimenta-se, entre outras fontes, desse movimento.

Referências:

GROTOWSKI, J. Em Busca de Um Teatro Pobre. Editora Civilização Brasileira.

O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959 - 1969. Textos e materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugenio Barba. Curadoria de Ludwik e Carla Pollastrelli com a colaboração de Renata Molinari. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007.

domingo, 2 de março de 2008

Inversão de paradigmas na Arte Educação

A Arte-Educação vista sob o paradigma da criança.
De fato, tomamos isso por plano de trabalho. E não se trata de nenhum espontaneísmo, nostalgia etc.

Trata-se de uma inversão de paradigmas, na trilha proposta pelo biólogo e filósofo Francisco Varela , que afirma ser necessário, do ponto de vista das ciências da cognição, no
contexto de uma retomada do concreto, inverter as “posições do perito e da criança
na escala de desempenho”. Varela apresenta essa inversão do seguinte modo:

Ficou claro que a forma de inteligência mais profunda e fundamental é a de
um bebê, que adquire a linguagem a partir de emissões vocais diárias e
dispersas e delineia objetos significativos a partir de um mundo não
especificado previamente."

Mas, quais as nossas tarefas em relação à criança?

1) Aprender com a criança. A oportunidade é ímpar.
2) Ao interagir com a criança, mundos se tocam e se trocam: o da nossa experiência, que formata, organiza, seleciona e direciona, e o da brincadeira exploratória e sensível.
3) Favorecer que a criança entre em contato com as explorações da nossa cultura, mas de tal modo que ela possa se apropriar disso e não apenas reproduzir um saber prévio e existente.
4) Não abdicar do nosso papel de orientação e de cuidado, traçando limites que favorecem a própria exploração sensível.
Temos uma enorme responsabilidade pelas crianças. Para tanto, devemos cuidar melhor do mundo que oferecemos à elas. Isto é: afinar e refinar nosso modo de ver o mundo e a vida. A arte nos oferece um caminho privilegiado: tanto para a criança quanto para o adulto. Por isso falamos de uma aesthesis: de um conhecimento (do) sensível. E o que a criança faz senão isso?

Referências:
VARELA, Francisco. O reencantamento do concreto. In: Cadernos de
Subjetividade/Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP – São Paulo: Editora
Hucitec/Educ, 2003.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Gramática da Fantasia

Um menino e uma menina bateram à porta. Queriam o novo vizinho para brincarem juntos. É assim com a infância. Chegava alguém na vizinhança, então batíamos à porta e chamávamos o menino pra rua. Agora, nem tanto, tudo dentro dos prédios, na maioria dos casos. Num segundo, sem troca de palavras, lá estavam eles deslizando, sentandos, pelos degraus da escada.

Quem entende a cultura lúdica da infância sabe o que é isso: a experiência sensível. Descer as escadas daquele jeito, repetidas vezes.

Outro dia um dos meninos se despede e vai pra sua casa. Tem 06 anos. E como ele vai? Descendo as escadas sentado... No mínimo, é muito divertido.

A criança não só inventa trajetos, ela habita mundos.

Tudo isso me vem à mente o precioso livro de Gianni Rodari: Gramática da Fantasia. Ele fala disso, dessas soluções que as crianças criam. Fala da infância de Lênin: ele saia e entrava em casa pulando a janela.

O livro fala da gramática da fantasia, de como você cria histórias e fabulações rabiscando, desmanchando, justapondo elementos heterogêneos (um cowboi carregando um piano nas costas...). É genial.

Um bom livro para pessoas envolvidas com a criação, para arte-educadores e todos aqueles que se interessam pelo universo da fabulação.

Referência:

Rodari, Gianni. Gramática da Fantasia. Summus Editorial
web site em italiano: Gianni Rodari