domingo, 30 de dezembro de 2007

A criança pequena faz teatro?


Quando nos encontramos diante desta pergunta (se a criança faz teatro, no caso, a criança de até 10 anos de idade), primeiro devemos fazer outra pergunta: o que temos em mente quando dizemos
teatro?

A questão tem por suposto que
os teatros são muitos. Não há uma técnica de teatro e, portanto, não haveria um método específico de ensino do teatro para crianças. Então, vamos lá:

1. A criança brinca. E quando ela brinca realiza uma exploração sensível do mundo.

2. Ao desejarmos ensinar algo às crianças deveríamos, primeiramente, perguntar o que poderiamos aprender com elas. Ensinar teatro às crianças pequenas pode ser como
vender água na beira do rio.

3. Outra pergunta: na prática de Arte Educação ou de Teatro Educação a que nos dedicamos,
qual a experiência sensível que as crianças estão realizando? Não podemos nos esquecer: arte é conhecimento sensível, mesmo que capture forças insensíveis.

4. O ensino de arte pressupõe, numa via, que a criança entre em contato com o mundo da arte. Ana Mae Barbosa, por exemplo, defende a triangulação: a) o fazer; b) a apreciação; c) a crítica e a análise. Nessa direção, este blog defende que há caminhos que conectam o brincar exploratório e sensível com as experiências artísticas (principalmente com as vanguardas artísticas, incluindo o teatro pós-dramático). Tudo depende de nossa capacidade de seleção.

5. Koellreutter, músico e compositor a quem sempre recorro, distingue, nos processos de formação artísticas, entre o figurativo e o pré-figurativo: o primeiro ensinaria técnicas que deduzidas de determinadas formas artísticas prontas e acabadas; o segundo abriria potências de experimentação. Em Artes cênicas, quais seriam essas potências?

6. Alinho os seguintes meios que podem ser potencialmente explorados:

-
Corpo

Exploração do espaço e de objetos de relação. Tais objetos, na trilha de Lapierre
& Aucouturier (veja uma postagemsobre os autores), são aqueles que permitem o contato da criança com um objeto que não dirija imediatamente para um jogo de regras específico ou para um uso já codificado e que permita, em primeria mão, um contato com o seu tônus corporal (fazendo a ponte entre o sistema involuntário e o sistema voluntário) e, em segunda mão, um contato com seus parceiros e parceiras. Os panos são excelentes objetos de relação. As cordas também, mas devem ser usadas com cuidado (pois podem enforcar facilmente). Bastões (cabos de vassoura) são outros objetos excelentes.

Sempre componho um baú com dois tipos de objetos: a) os objetos relacionais (panos etc.) e os que já trazem um histórico mais codificado de uso: telefones, bolsas etc. Nesse último caso, deve ser evitada a parafernália, pois as crianças ficam com opções em excesso, não sabem o que utilizar, ficando muito mais envolvidas com a confusão do que com os objetos. Procuro oferecer aquilo que foge a um senso muito "social": não pode faltar um pinico, por exemplo. Um guarda-chuva proporciona plasticidade. E assim por adiante. Tal uso, eu condidero como o que deve ser mais cuidadoso, pois, na trilha de Deleuze, é a linha sóbria que nos permite criar.

Deve ser lembrado, ainda, o teatro de formas animadas. Peter Slade (veja uma postagem em que apresento o autor e discuto o teatro na escola) diferenciava, assim, entre o jogo pessoal (a partir dos impulsos corporais) e o jogo projetado (onde a ação parte de um objeto animado pela criança, como um boneco etc.). Os dois jogos podem ser combinados. Mas, de fato, é bom lembrar que, como as técnicas circences, o objeto animado livra as crianças da introspecção que o modelo do teatro dramático e interpretativo impõe. Além disso, o objeto é, na relação com o corpo, o primeiro e não o segundo para Lapierre & Aucouturier. Isso quer dizer que a criança pequena necessita de contato com os objetos e com os outros corpos (fazer coisas no mundo, tal como subir em árvores, empurrar os outros, cair, pular, puxar etc.), através dos quais regula o seu tônus e pode, assim, produzir um conhecimento sensível.

-
Imagem

A criação de instalações corporais e com objetos no espaço. A imagem em movimento. A plasticidade das criações.

-
Som

A pesquisa sonora. O levantamento de sons, seja por gravação, seja por execução ao vivo etc. Estudo musical e sonoro. A poesia verbal e sonora.

6. A criança pequena, na perspectiva do teatro dramático, não faz teatro, mas sim faz-de-conta. Peter Slade defende que a criança tem uma expressão própria: o jogo dramático. Este seria, para Ingrid D. Koudela, diferente do jogo teatral (no qual há comunicação palco-platéia).

De fato, essa comunicação é derivada do jogo teatral ou está na sua base. No caso do teatro pós-dramático para uma relação de ensino teatral, nós não teríamos por suposto a comunicação, mas a exploração sensível. Mais a presença ritual do que a comunicação teatral. Numa postagem, fiz referência a Maria Lúcia Pupo, pesquisadora do Teatro Educação, cita as características de um teatro pós-dramático que poderiam ser levadas em conta num processo de formação artística:
transgressão dos gêneros;

b) negação da fábula.; c) presentificação; d) recusa da síntese em troca da busca de uma "densidade em momentos intensos".

7. Transgressão dos gêneros

Podemos misturar comicidade com dramaticidade e formalismo (uso de objetos, instalações, experiências de poéticas vocais etc.).

8. Negação da fábula

Caractéristica essencial. O teatro dramático pressupõe uma construção da fábula em cena que é extremamente sofisticada: envolve técnicas que as escolas de teatro dramático procuram ensinar, na perspectiva da interpretação teatral etc. A criança pequena não irá dominar esses elementos, que pressupõe, inclusive, a presença de um diretor e de um dramaturgo orientando o processo de fora. No faz-de-conta das crianças, quando elas entram nesse nível de fabulação dramática e concatenada, elas realizam apenas ações esquemáticas, mas nunca o plano proposto.

A negação da fábula supõe que não há uma história, um além ocorrências cênica apresentam em termos de sua fisicalidade mesma. O público não vê o desenrolar de uma história concatenada, mas sim vivencia e compartilha de um acontecimento. Assim, as crianças estão livres de uma "comunicação palco/platéia".

9. Presentificação e recusa da síntese em favor dos momentos densos

As vivências que estão ocorrendo no momento. Se elas são passíveis de repetição, isso não interessa. Aqui, há possibilidades de conexão com o campo da performance art.

10. O que pode ser ensinado, em termos de habilidades?

As aulas de circo, principalmente as de equilíbrio, malabares, etc. são as que mais proporcionam domínio de habilidades. Andar na perna de pau, etc. Nesse sentido, os brinquedos como skates, bicicletas, patinetes, são passíveis de serem utilizadas cenicamente. Isso sem falar na possibilidade de usos de tecnologias.

Por fim, independente de tudo o que foi dito, uma certeza permanece e atravessa todas esses planos: deixe, permita e favoreça que as crianças brinquem.

sábado, 22 de dezembro de 2007

O que a criança ensina aos adultos

Vi num vídeo sobre o Orçamento Participativo da Educação, de Recife, o depoimento de um menino:

"A criança ensina três coisas aos adultos:estar sempre alegre, não ficar parado e chorar muito pelo que deseja".

domingo, 9 de dezembro de 2007

Marina Machado: a criança, o brincar e o teatro



Marina Marcondes Machado vem pesquisando há anos a cultura lúdica da infância e suas conexões com as artes, especialmente com o teatro. Tive a felicidade de conhecer pessoalmente Marina e tê-la como companhia numa oficina com educadores no Encontro Mundial de Artes Cênicas, em Araxá/MG. E descobrir afinidades: a infância como o plano sobre o qual educação e arte deveriam se voltar. Infância-memória e infância-presença: os meninos e meninas que fomos e as crianças todas com quem nos deparamos no dia-a-dia.

Marina publicou três livros muito preciosos: O Brinquedo-Sucata, Poética do Brincar e Cacos de Infância. O primeiro apropria-se especialmente das teorias de Winnicott, que é o psicanalista que escreveu o genial O Brincar e a Realidade. O livro é um clássico. E Marina faz uma bela introdução ao pensamento de Winnicott, expondo esse espaço que está entre o objetivo e o subjetivo, que é o da experiência lúdica. Já Poética do Brincar parte com Bachelard e abandona-se nesses vôos. Em Cacos da Infância ela discute as relações da infância com a criação teatral, especificamente com a questão do personagem criança.

Uma autora para ler e reaprender sobre a infância e o brincar.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Devolver à criança a encenação: outro modo de ver o teatro na escola

Quando comecei a brincar com crianças - e era precisamente isso - eu não sabia nada sobre Arte-Educação ou Teatro-Educação. Apenas me deixava levar pelas linhas de errância do brincar exploratório e sensível das crianças.

Estava trabalhando na escola Balão Vermelho, em Belo Horizonte, e era o ano de 1974. O fato de fazer teatro - e eu começava como ator - não me trazia nenhuma vontade de impor qualquer codificação às crianças. Brincava no recreio, em meio a areia, terra, jabuticabeira, goiabeira e um zumzum maravilhosos de crianças. Entretanto, somente anos depois, pude perceber que aquele plano, o do brincar, carregava as potências desterritorializantes que hoje busco para a criação cênica.

Com as crianças de 06 anos que deixavam a educação infantil, fiz uma apresentação que tornou-se exemplar para mim, hoje. Explico: de um tipo de ritualização cênica que não envolve a distinção tradicional entre palco e platéia, como é comum nas codificações dos jogos teatrais. E que fogia, além disso, às exigências tão comuns de exibirem crianças em ocasiões festivas. Os pais e mâes deram os braços e fizemos um longo corredor.. As crianças, então, engatinhavam por cima dos braços cruzados, atravessando uma ponte de corpos. Depois, brincávamos de esconder e as crianças faziam sons para que os pais as encontrassem.

A criação partiu de mim para as crianças. E não vejo problema algum nisso. Naquele momento, de tanto beber na fonte do brincar, encontrava-me livre para fazer, eu também, um convite em direção ao brincar, envolvendo também os adultos. Organizava o ritual, a festa, o encontro. Mas na direção das crianças - o que elas me forneciam quando brincávamos juntos.

Ali germinava um pensamento que, muitas vezes, deixei perder, em meio a tanta psicopedagogia que me abafou os sentidos durante anos. Um germem poderoso: a teatralização como ritual parcipativo. Acrescento nisso a possibilidade de o educador se envolver com o brincar. Não para enfeitar, arrumar, exibir crianças etc. Mas sim para se perder por uns momentos também. Consciente disso. Buscando a experimentação. No caso: um modo dos corpos se encontrarem num espaço e num tempo que não seja do auditório, da exibição, da cena codificada, da sociabilidade convencional. Fizemos uma ponte de corpos.

Obviamente, esse é apenas um dos caminhos que se abrem. Eu devolvia às crianças, pelo meu olhar, os traços de brincadeiras cênicas que elas viviam no cotidiano. Curiosamente, minhas aulas não eram nomeadas de teatro, mas de "aventura perigosa". Hoje, consigo perceber conexões e ressonâncias com o campo da
performance art. Veja bem: não estou dizendo que uma coisa é a outra. Antes disso: elas se tocam...

O teatro pós-dramático, a performance art, os hibridismos em arte, tudo isso dialoga com as linhas de errância do brincar. A Arte-Educação pode aprender muito com isso. No mínimo: os caminhos são múltiplos e diversos.

domingo, 11 de novembro de 2007

O brincar como exploração sensível e a Arte-Educação



Este blog tem feito, sempre, conexões entre o brincar e a criação artística. No caso da Arte-Educação, tenho insistido nas linhas de errância do brincar como pensamento-impulso para a fabricação de mundos sensíveis.

O brincar, no entanto, é sempre visto com uma certa desconfiança:
- Um ponto de vista espontaneísta, sentimental e idealista este de tomá-lo como modelo e/ou referência de criação.

Não é nada disso. O brincar, nas suas linhas de errância, realiza conexões para a criação artística nos seguintes aspectos:

1. Por se uma organização poliforma e perversa da libido, o brincar exploratório e sensível não se deixa categorizar e nem submete hierarquias (no corpo e nas paisagens que fabrica);

2. Potencializa, além disso, um campo de pura virtualidade: pertence a um universo não-diferenciado - como ocorre com as fronteiras das disciplinas artísticas nos seus nichos históricos de desenvolvimento (teatro, dança, artes-plástica, poesia verbal, poesia sonora, música etc.);

Por esses fatore potenciais, o brincar permite que os arte-educadores abandonem os programas de ensino codificadores (codificação do teatro e seus nexos de significado fechado entre audiência e atuantes, como ocorre nos diversos sistemas; codificação da música tonal etc.). Assim, o brincar, ao desobrigar os arte-educadores de se aterem à tarefa de decodificar a arte, libera imensa carga de energia criativa. No entanto, é preciso muito treino e muita dedicação para entender o que corre no brincar exploratório e sensível. E, mais ainda, para a realização de conexões com a criação artística. E como potencialidade pura, aponta para conexões entre o nível pré-expressivo, como visto pelo encenador Eugênio Barba, ou pré-figurativo, como visto pelo músico Koellreutter.

O brincar não é modelo para coisa alguma. Ele é a coisa.

Referências:
- Imagem: Miró (
1893-1983)

terça-feira, 30 de outubro de 2007

A criança e o contato corporal

Norval Baitelo Júnior, um dos nossos grandes pesquisadores das artes do corpo como mídia primária, indicou-me um livro há alguns anos atrás: Tocar - o significado humano da pele, de Ashley Montagu. ressaltando a importância do contato corporal, principalmente com as crianças. O autor mostra como é vital para a sobrevivência dos mamíferos o contato corporal.

Também por outras vias, descobri a importância do contato corporal. Sempre que vejo uma criança adoecendo com freqüência, a primeira pergunta que eu faço para quem cuida é: você toca o menino/a menina? Você faz massagens na criança?

Nossa cultura, afro-descendente, é uma cultura de jeito de corpo, brincante, afetiva. Mas as pessoas vão perdendo esses jeitos: deixam de ninar, deixam de embalar. Os adultos não conseguem estabelecer um contato corporal afetivo e saudável entre eles e transportam isso para o seu relacionamento com as crianças. Uma das artes marciais mais interessantes sobre esse aspecto, é o Aikido. Tive, através do Sensei Ichitami Shikanai, residente em Belo Horizonte, do Nakatani Dôo, a felicidade de descobrir a importância da sensibilidade corporal. O Aikido é uma arte marcial cujo nome diz caminho de união com a energia (nossa e do adversário). Aliás, a técnica do contato-improvisação, desenvolvida peçp bailarino e coreógrafo estadunidense, Steve Paxton, inspirou-se em muito no Aikido: o contato corporal. Shikanai enfatiza a sensibilidade do toque, o conhecimento das intenções do adversário, o caminho sensível.

Assim, faço aqui uma pequena lista de estratégias de contato corporal para crianças:

- Para amanhecer:
Cheire muito a criança, entre em contato com o seu corpo;
Abrace;
Massageie a região em volta do umbigo, com movimentos circulares, primeiro para a direita, depois para a esquerda - deixe ampliar suavemente para o tórax;
Massageie a sola dos pés demoradamente;
De pé, dê um longo abraço, bem demorado.

- Para brincar:
Role com a criança no chão;
Deixe que ela deite sobre você (você de costas para o chão, ela de bruços sobre você), permancecendo nessa posição demoradamente;
Brinque de modular: você fecha os olhos e a criança modula seu corpo, depois o contrário;
Descubra o tônus dos corpos: acolher (fechamos sobre o nosso centro no umbigo), expandir (abrimos o corpo a partir do umbigo como uma estrela);
Brinque de lutar.
Faça yoga juntos.

Obs.
É importante que o contato corporal seja cuidadoso. Você deve ficar atento também para descobrir sempre os espaços que se abrem nos contatos corporais, desviando do apego, do contato "meloso" - busque liberdade. Há sempre em cada contato corporal um espaço entre - vazios que se instalam e que se tornam promissores virtuais.

Para saber mais:

- MONTAGU, Ashley. Tocar - o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988
- Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano.
- Body Mind Centering
- Movimento Autêntico
- Contato improvisação

domingo, 28 de outubro de 2007

Olhar-criança



Deleuze diz em Francis Bacon: lógica da sensação, que "de um outro ponto de vista, a questão da separação das artes, de sua autonomia respectiva, de sua hierarquia eventual, perde toda a importância." Para o pensador que se avizinha do caos para torná-lo mais sensível, "há uma comunidade ds artes, um problema comum." Tomo essas colocações de Deleuze, extraídas do contexto em que ele focaliza a obra do artista plástico Francis Bacon, para repensar os lugares a que destinamos as artes quando se tem em mente a Arte-Educação.

Isso é teatro, instalação, artes plásticas ou oque? Esta é a pergunta que procura estriar, pontuar e classificar o flutuante universo da criação artística.

Quando se fala em Teatro na Escola, como venho insistindo nesse blog e nas minhas perambulações em espaços diversos (de formação de atores, de trocas com pesquisadores da dança, de discussão com educadores...), tudo parece remeter aos códigos teatrais que devem estar subsumidos no sistema pedagógico. Quando se fala, nos cursos de licenciatura em teatro, no tema, quase sempre temos o enfoque dos problemas do teatro segundo uma parte de sua história. E como nos lembra Fernando Pinheiro Villar, toda história é parcial e a do teatro é uma das mais parciais, Stanislavski, Meyerhold, Brecht e Grotowski. Parece que a cena fechou-se num ciclo de desenvolvimento linear, acumulativo.

Por tudo isso, faço um caminho oblíquo, entre tantos desfiles históricos. Trago, para tanto, o olhar-criança. Por outras vias, uma lógica da sensação.

Presenciei, num espaço em que as crianças da Vila Antena, em Belo Horizonte, ficavam nos horários em que não estavam na escola, a criação sutil de dois meninos por volta de seus 7-8 anos de idade.

A professora separava tiras muito finas de papel crepon juntamente com as crianças, para decorar algumas caixas. Ou seja: o de praxe nas pedagogias antigas de ocupar as crianças com alguma atividade construtiva. De repente, dois meninos esticaram uma dessas tiras, que possuía mais de 4 metros e foram se deslocando para fora da sala.

Criaram um espaço-movimento-instalação. Tomavam o cuidado para que a fita tão fina não se rompesse e foram descendo as escadas. A coisa que criavam (seu envolvimento corporal, o desenho-trajetória da fita vermelha, o seu contorno nas quinas das paredes e muito mais) era muito bonita, precisa e sensível. De repente, a professora ralhou com os meninos e mandou que eles parassem com aquilo!

Ela não havia aprendido a ver outra coisa que não as caixas prontas. E, possivelmente, uma pessoa formada nas escolas de teatro acharia apenas curioso, pois também não aprenderam a ver outra coisa que não a aprendizagem dos códigos teatrais.

Precisamos de um olhar transdisciplinar: um olhar-criança.

A questão que permanece: como inserir aquela forma num sistema de circulação de criação-recepção de arte. Ou ela deveria permanecer como simples brinquedo temporário?

Os circuitos de criação-recepção são ritualizações lúdicas do nosso cotidiano. Saber reinventá-los é a tarefa de artistas. Um olhar-criança pode trazer novas relações e possíveis. Para isso, é preciso que adultos saibam pesquisar esse modo de habitar o mundo que é o brincar sensível e exploratório da criança.

Referências:

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Lógica da sensação.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007


quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Teatro pós-dramático e educação II



As potências do teatro pós-dramático em relação à educação (ou melhor, ao Teatro-Educação), tomam o foco novamente. No blog em que deflagro questões sobre estética contemporânea, nomadismos e criação cênico-corpórea, fiz uma postagem intitulada Do teatro pós-dramático e das dramaturgias híbridas, no qual cito o número especial da revista Humanidades, da Editora da UnB, dedicado a essa vertente da criação cênica. Um dos artigos é o de Maria Lúcia Pupo, que discute justamente as perspectivas do teatro pós-dramático, na análise de Lehmann, em relação à educação.

No artigo, Sinais de Teatro-Escola, Maria Lúcia Pupo pergunta:"haveria procedimentos específicos que chegassem a configurar uma pedagogia para a cena pós-dramática?" A autora faz essa pergunta no recorte de uma "ação educativa proporcionada pelo exercício e pela função da cena por parte de pessoas de qualquer idade qu evivam processos de aprendizagem em teatro, sem, no entanto, possuir qualquer vínculo profissional com a arte".

Maria Lúcia apresenta as principais características do teatro pós-dramático, entre elas, a de ser um teatro que realiza a transgressão dos gêneros, a negação da fábula, a presentificicação, a recusa da síntese em troca da busca de uma "densidade em momentos intensos". Pupo ainda fala da não-hierarquia das imagens, da presença no lugar da representação, de uma corporalidade autosuficiente, entre outros aspectos. Para a autora, há certos exercícios teatrais que se caracterizariam antes por não definirem situações dramáticas ou configurações de personagens. E que podem ser acionados, acrescento, como linguagem cênica.

Trata-se de um traço pós-dramático a inserção do real na ficção, de modo que os eixos espaço-temporais, em sua concretude e fisicalidade (ou materialidade cênica) possam ser a própria textualidade cênica. Ou seja, a própria linguagem da cena. Assim, o que antes poderia ser tomado, no teatro dramático, como treinamento e processo que não deveria ir para a cena, sendo abandonado antes, passa a fazer parte do resultado.

Não posso deixar de citar a experiência pioneira do projeto Laboratório: Textualidades cênicas contemporâneas, projeto da Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Fundação Municipal de Cultura, com curadoria de Fernando Mencarrelli e Nina Caetano, que difunde e trabalha na formação como criação para uma cena pós-dramática. O projeto traz especialistas que discutem essa criação contemporânea, proporcionando aos núcleos de criação inscritos, oficinas. Na versão de 2007, André Semenza e Fernanda Lippi do Zikzira Physical Theater, com sede em Londres e em Belo Horizonte, dialogam com os criadores do projeto, não no sentido de proporcionar uma formação, mas de, juntos, fazer um mapeamento dessa criação.

Por fim, acrescento outra linha: a cultura do brincar. Na direção proporcionada pelo de Maria Lúcia Pupo, tomo por tarefa a investigação dos procedimentos técnicos de criação inspirados nas
linhas de errância do brincar. Entendo que a brincadeira exploratória e sensível da criança fornece elementos que podem ser esquisados pelos artistas cênicos interessados no pós-dramático. Modos esses antevistos por Maria Lúcia Pupo, quando ela aponta para as potências de uma pedagogia teatral pós-dramática: aquela em que se dá a "instauração de uma desordem".

Referências:

PUPO, Maria Lúcia. Sinais de Teatro-Escola. In
Humanidades, edição especial. Brasília: Editora UnB, novembro de 2006.
LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. Translated and Introduction by Karen Jürs-Munby. Routledge: New York, 2006.


Postagens:

Teatro Pós-dramático e educação
O brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação

Imagem: Grupo Escombros: Artistas de lo que queda - Argentina. Exemplo de coletivo de artistas que realiza intervenções no espaço urbano.

domingo, 16 de setembro de 2007

Projeto Bira: cultura do brincar na região amazônica



O site do Projeto Bira - brincaderias infantis da região amazônica, coordenado por Renata Meirelles e David Reeks, é maravilhoso. Há uma versão em português e outra em inglês, fique atento. E você ainda pode ver um vídeo sobre o projeto. Há descrições de brincaderias e outras informações.

Renata Meireles é uma brincante que vem pesquisando e difundido a cultura do brincar da região amazônica por diversos lugares, do Brasil e dos EUA.

Quem pôde viver um pouco desse mundo que a industrialização vem engolindo sabe o que é isso. Interessantes que a maior parte das brincadeirais e brinquedos são encontradas em outras regiões. Terreno fértil para pensar a infância e sua cultura como uma manifestação universal.

Obs. Imagem: do site do Projeto Bira.

domingo, 26 de agosto de 2007

O Teatro-Educação e sua doença





Aplicação de um saber prévio: eis a doença que aflige o Teatro Educação. Necessidade de alicerçar a criação em elementos extraídos das ciências do desenvolvimento humano: eis a doença agravando-se.

Por que falo de doença? Nietzsche dizia que um dia a arte ainda seria a nossa medicina. Se entendermos por aí uma prática-pensamento de Teatro Educação, as coisas tendem a melhorar.

Ocorre que você pode ir por vários caminhos. A doença consiste em acreditar e viver como se o caminho fosse único. Ao contrário, são caminhos...

Cada um produz ou inventa o mundo que deseja habitar. No caso da cultura do brincar e de suas linhas de errância, importa acessar as potências do olhar-criança sobre o mundo.

Tenho visto que os artistas cênicos que se voltam para a Arte Educação muitas vezes aprendem, nos cursos de licenciatura principalmente, que é preciso estudar as etapas de desenvolvimento do ser humano, a fim de validar os exercícios teatrais. Aqui, a tese da aplicação: você tem um saber prévio sobre a cena que deve ser digerido por um grupo humano específico, sob sua coordenação ou liderança. Você estuda o desenvolvimento humano para ter um chão. A gente precisa de um chão: o lugar onde piso com os pés.

Eu já estou, sempre, num chão. De algum modo, já estou numa situação. O segredo consiste em tirar meu chão... Ou fazê-lo cantar. E entrar em conexão com outros cantos. Deixar-se modificar. Abandonar o território. Fazer-se nômade.

Outro jeito de acessar a criação em contextos de ensino ou em grupos humanos não voltados necessariamente para a profissionalização: o de encenador Robert Wilson nos anos 60 e 70. Ele tomava autistas e deficientes auditivos como instauradores de um novo plano da encenação. A questão não era, como tem se apresentado a muitos daqueles que se voltam para a educação inclusiva em arte, por exemplo, estudar meios de levá-los à arte - a um saber prévio. Seu caminho consistiu, ao contrário, em mostrar que já havia arte ali, no movimento daquele autista. A cena se modifica, o chão foge.

Trata-se, desse modo, de fazer que o plano da arte varie, defase, seja atravessado e saia à frente com outras potências, a partir da entrada de expressões humanas não afeitas ao universo da obra de arte entendida como obra acabada (coisa de algumas poucas centenas de anos).

Porém, eu não estaria gerando outra exclusão ao dizer que se trata de uma doença, o caminho único que tem vigorado no Teatro Educação? Justamente, se o que não mata engorda, a questão não está presa à estética do teatro dramático, mas à normatividade que tem imperado na abordagem do tema. A arte não surge como regra e norma, mas como um meio de dar sentido à vida. Que seja uma regra: ela vale enquanto instaura o chão que a sustenta! O teatro dramático, por exemplo, é uma sinfonia-máquina. É um desejo. Exclui do seu plano tudo o que é ruído. Mas, justamente, outros caminhos incluem os ruídos - as linhas de errância da criança são alguns deles.

As crianças e suas linhas de errância proporcionam outro plano. Em vez de procurar encaixar um mundo prévio nos alunos e alunas, você entra num plano de ciência nômade: seguir os traços de expressão que já estão acontecendo. E isso, é outra coisa.

Experimente!


OUTRAS POSTAGENS SOBRE O TEMA:

O Teatro pós-dramático e a educação
O Brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação
Teatro, educação & cultura do brincar


Imagem: Kandinsky - Composição VIII, 1923

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Teatro pós-dramático e Educação





Uma das questões apresentadas no outro blog sobre criação cênico-corpórea, estética e micro-políticas são exercícios de ressonância com as análises de
Hans-Thies Lehmannn a respeito do teatro pós-dramático. Entretanto, não havia, ainda, encontrado quem se dispusesse a trabalhar o tema na perspectiva da Arte-Educação. A grande maioria dos estudos de Teatro Educação, especificamente, estão voltados ao aspecto dramático, à construção de personagens ou de narrativas racionalmente discursivas.

André Mendes, com sua tese de doutorado O teatro pós-dramático na escola, vem potencializar esse campo de pesquisa e criação. Trata-se de um estudo que conribui para as práticas de de arte-educadores, artistas cênicos e interessados no campo das fronteiras e intermídias. Lembro-me, nesse caso, do pioneirismo de Ione Medeiros em Belo Horizonte, fundadora do Oficcina Multimédia, grupo que vem há mais de 20 anos criando nesse campo. Ione militou como Arte-Educadora e realizou diversos projetos nos Festivais de Inverno da UFMG que incorporavam uma estética cênica hibrida e provocadora. Para não falar, também, numa de suas parcerias, a artista Manoela Rebouças, que produz intervenções de Teatro Plástico nas escolas.

Na sua tese, André apropria-se, principalmente, dos pensamentos de Lyotard, Foucault e De Certeau, perpassando o happening, as intervenções cênicas, as criações híbridas, apontando para um teatro pós-dramático. Sua análise aborda as questões da educação e busca abrir brechas para a emergência de uma corporeidade não institucionalizada.

Muitos alunos e alunas de artes cênicas, atores e bailarinos, que estão em processos de criação tão singulares que não se enquadram totalmente na perspectiva do teatro dramático, quando solicitados a contribuir para a Educação, acabam por caminhar pelas já trilhas já reconhecidas. Não que um processo criativo seja melhor que o outro, mas sim que fazem emergir mundos diversos. Encontrar uma tese de doutorado que aborda tais questões alimenta a vontade de continuar a dialogar com os espaços institucionais da educação formal, abrindo novos possíveis para que as corporeidades de crianças e adolescentes possam usufruir das potências criadoras apontadas pelo pós-dramático.

Uma perspectiva pós-dramática para o teatro não resulta em algo que seja melhor ou que supere, em termos de paradigmas, o mundo inventado pelo teatro dramático. São, justamente, máquinas diversas: inventam, cada uma, sua própria coesão de sentido. O teatro interpretativo, baseado no discurso oratório dos atores, tendo o texto literário (mesmo que criado somente na encenação) como fator predominante, incluindo a conexão direta entre personagem e lugar, tem o seu lugar e constitui uma arte que podemos admirar a qualquer tempo. No entanto, quando se adentra nos espaços de uma arte mais instável, cujo estatuto configurativo implica interferências e ruídos, atravessamentos de sentido, flutuações de significado, outras experiências acontecem.

Uma delas diz respeito à entrada em cena de corpos desabilitados para a arte, expostos na sua concretude, abrindo espaços antes inconcebíveis para uma arte que se pensa completa e acabada. Um texto dramático pede que os atores dominem a técnica interpretativa, a fim de que possam as fendas do mundo. Num teatro pós-dramático, as fendas são as próprias corporeidades, expostas como estão, numa intromissão do real no plano da ficção.

Nesse sentido, um teatro pós-dramático é inclusivo: um corpo não habilitado para a cena, como a dança contemporânea não cessa de defender, pode ser um corpo expressivo, configurador de uma experiência poética. O teatro mais radical, como inaugurado por Robert Wilson nos anos 60, tem sido justamente o mais inclusivo: ele trouxe para a criação, em primeiro plano, autistas e deficientes auditivos. As conexões entre Educação e Teatro são, no mínimo, múltiplas e comportam singularidades.

A tese de André Mendes, nessa perspectiva, encoraja aqueles que desejam explorar outros caminhos para a criação cênica, em termos de Arte-Educação.

Para saber mais:

LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. Translated and Introduction by Karen Jürs-Munby. Routledge: New York, 2006.
GAMA, Ronaldo Nogueira. As novas tecnologias e o ator pós-dramático. Revista Polêmica Imagem n. 19,UERJ.

GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson: Trabalhos de Arte Total para o Teatro Americano Contemporâneo. São Paulo: Perspectiva.1986.
ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva-Fapesp, 2005.
SANDFORD, Mariellen R. (]Edited). Happenings and Other Acts. L
ondon and New York.Routledge. 1994
ROJO, Sara. La Performance art en America Latina. In, CARRERA, André... [et al] org. Mediações Performáticas Latino-Americanas II. BH: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

Territórios e Fronteiras da Cena. Revista eletrônica de artes cênicas, cultura e humanidades. ECA-USP/Abrace.

Referências:

Imagem: Grupo Escombros: Artistas de lo que queda - Argentina. Exemplo de coletivo de artistas que realiza intervenções no espaço urbano.

sábado, 21 de julho de 2007

Pipas, samurais-meninos e movimento

Portinari, Pipas, 1941


Dois meninos, de pés no chão, corriam de manhã, pipas às costas. Tempos que eu não via tal cena. Eram samurais pequenos subindo rua de asfalto, aos gritos, tentando salvar ou buscar outra pipa. Um vento de Brasil antigo passou como um filme gasto.

Vi a cultura do brincar e sua fabricação de mundos. Não dá para acreditar que existem meninos brincando de pipa, ainda.

Era uma guerra de ventos e de artefatos empinados contra.

Longe, a nostalgia. O que eu trago é o olhar sobre o menino e a menina e os mundos por eles inventados: um arsenal de coisas, fabulações e outras criações. Numa tarde, por exemplo, os adultos se divertiam com seus copos e suas comilanças, o que é natural quando a libido fica parada em certas zonas do corpo. Mas os meninos cortaram repentinamente os espaços, riscando trajetos. Vi os desenhos e pensei: uma arte de movimento e velocidades. De pura intensidade.

Guardei essas poesias. Não são imagens que cobrem liricamente mundo pré-existente. São mapas amassados nos bolsos e abertos para serem percorridos e mil vezes rabiscados. Os meninos inventam, a cada momento, o homem.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano



Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano é o título de um livro maravilhoso cujos autores são Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller. O primeiro, o biólogo chileno que, juntamente com Francisco Varella, conribuiu para modificar conceitos sobre a conexão corpo, mundo e conhecimento. Ela, psicóloga alemã, membro do Centro Bávaro de Pesquisa Educacional do Instituto Estatal para a Educação na Primeira Infância e fundadora do Instituto de Pesquisa de Ecopsicologia da Primeira Infância de Passau, na Bavária.

Na Introdução, os autores defendem a idéia de que a linguagem surgiu, na história da espécie humana, entrelaçada com o emocionar. Mais do que linguagem como representação, eles abordam a conversação: uma "convivência consensual em coordenações de ações e emoções". Partem do pressuposto de que a emoção é que define a ação. Assim, Maturana e Verden-Zöller tomam o ato valorativo como algo que precede a dimensão do necessário. O desejo, portanto, desempenha em nós, papel fundamental. Não dá para pensar uma realidade que se imponha sem o intercurso desejante. E não é o que o brincar faz o tempo todo?

A obra divide-se em três grandes capítulos: Conversações matrísticas e patriarcais, por Humerto Maturana, O brincar na relação materno-infantil (fundamentos biológicos da consciência de si mesmo e da consciência social), por Gerda Verden-Zoller, O brincar: caminho desenhado, por Gerda e Maturana. E por fim, o epílogo e um glossário.

A obra é um alento diante da predominância, na eduação infantil, de projetos extração cognitivista, na qual o lúdico tem desempenhado o papel de mero suporte para a aquisição de competências como ler, escrever e contar.

O livro discute as relações entre o amar e o brincar, trabalhando as linhas que caracterizam as culturas patriarcais e matriarcais, considerando-se a dominação histórica das primeiras sobre as outras. A corporeidade, na perspectiva do brincar e do emocionar, assume sua importância não só para a educação infantil mas também para uma ecologia humana.

Certa vez, convidado a discutir com educadores um projeto de educação infantil que envolvia a introdução de conhecimentos de modo interdisciplinar, porém, com grande carga intelectual, procurei ponderar sobre a necessidade de deixar as crianças pequenas brincarem mais, adiando a formalização para mais adiante. Uma das coordenadoras do encontro chamou-me num canto e disse: - Vi o seu sofrimento quando a tendência é sobrecarregar a criança pequena de estudos, deixando quase nenhum espaço para que ela brinque! De fato, era isso mesmo. A influência cognitivista trouxe para a primeira infância toda uma carga de cientificismo que não deixa de ser, também, um saber dominante. Não se trata, entretanto, de avogar o irracionalismo, que é, na verdade, o complemento do racionalismo. Porém, há saberes que não são considerados valores fundamentais para uma sociedade como a nossa.

Em muitos projetos de educação infantil há uma desconfiança, por vezes sutil, em relação à vida do corpo em sua agitação molecular. Na perspectiva de Maturana e Verden-Zöller, pouco espaços para os momentos em que pode se dar o entrelaçamento da linguagem com o emocionar. Por decorrência, o brincar só pode ter um lugar secundário: é sempre instrumento para outra coisa. Alguns desses projetos para a primeira infância querem, de um jeito ou de outro, formar pequenos intelectuais críticos e esquecem que, primeiramente, somos corpo.

Nesse aspecto, cito o interessante texto de Maria Isabel Brandão de Souza Mendes e Teresinha Petrúcia da Nóbrega, intitulado Corpo, Natureza e Cultura: contribuições para a educação. As autoras abordam, principalmente, as idéias de Maturana, Varella e Merleau-Ponty sobre o conhecimento, o corpo e o mundo. Defendem a primazia do corpo sobre os conceitos de representação (mental, principalemente). Trata-se de um corpo-ação, pois
"considera-se que na própria ação já há cognição, tendo em vista que a aprendizagem emerge do corpo a partir das suas relações com o entorno. Essa concepção de aprendizagem problematiza, portanto, a concepção intelectualista pautada nos pressupostos racionalistas da modernidade, a qual concebe o corpo e os sentidos como instrumentos no processo de conhecimento, ou então como responsáveis por enganos, por erros, sendo então descartados ou considerados acessórios no processo de construção do conhecimento."

A recuperação do corpo que brinca nos projetos educacionais pode ser reivindicada, principalmente, quando temos em vista a primeira infância. O livro de Maturana e Verden-Zöller potencializa essa perspectiva, na qual a gestualidade e toda a gama de vivência corporal são reconhecidas como modos de conhecimento válidos por si mesmos. Diria que são outras ciências - outras modalidades de saber. A convivência do diferente, a aceitação da diversidade no mundo atual, a retomada da corporeidade, tais são os temas que se colocam, portanto, em pauta.

Referências:
MATURANA, Humberto R. e VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotii e Lia Diskin. São Paulo, Palas Atenas, 2004.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

O brincar e a educação infantil - I

A postagem é uma versão resumida de uma conferência realizada em Outubro de 2005, para a rede de educação infantil da Prefeitura da Cidade do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco.


Imagem: Kandinsky

Por que o brincar?

O desafio colocado é pensar a função do brincar na educação infantil quando os conteúdos escolares, a preocupação com a aquisição de conhecimentos com bases científicas ou mesmo definida pela importância central do domínio da linguagem escrita, pressionam no sentido contrário.

A educação estaria na linha direta de formação para um conhecimento que constitui o repertório e a capacidade de renovação da técnica humana, capaz de transformar a matéria e produzir riqueza. Entretanto, muitas são as técnicas. E uma técnica é um modo de entrar no mundo, de habitá-lo. O brincar, nesse sentido, constitui uma tekné (do grego): ao seu modo, ao seu jeito, cabendo a nós compreendê-lo operativamente como um modo de buscar um saber sensível exploratório. Mais ainda: a tekné do brincar é uma invenção das crianças de todo o mundo. Mesmo que tenham que lidar sempre com um mundo construído e regulado pela cultura dos machos adultos, as crianças do mundo reivindicam para si, seja às escondidas, seja às expensas dos programas e compromissos já delineados, a tekné que é uma entrada singular no mundo. Singular porque é uma coisa de criança. E qual é essa tekné (essa coisa de criança)? Ela é um modo de dar sentido à vida antes que os sentidos prontos se imponham sobre ela.

Esse modo de habitar o mundo é uma tekné que o brincar aciona. E se o brincar nos ensina isso, essa técnica de entrar no mundo, que é outro modo de dizer conhecer, como falar, ainda, de uma aprendizagem cujos conteúdos já estão dados de antemão?

Pode parecer que se está aderindo a uma coisa meio irresponsável. Seria como dizer que qualquer coisa pode, nada precisa ser feito e então “deixemos como está para ver como é que fica”. Não é, definitivamente, através de um espontaneísmo que se entende o brincar como um plano de experimentação. Ao contrário, isso envolve dedicação e pesquisa.

Então, convido você, leitor/leitora a dar uma volta, chamando o pensamento para caminhar...

Se acreditarmos que a educação infantil é somente uma questão de aprendizagem cujos conteúdos já estão dados de antemão, o brincar será pensado, de um lado, como um exedente de energia a ser gasta, do outro, como um instrumento ou veículo de aprendizagem. Antes disso, o brincar é um plano de experimentação.

Toda sociedade, todo organismo quer se reproduzir. É o desejo imenso de tornar igual e vencer a morte. Porém, isso gera problemas, alguns até mesmo dados à perseguição ou eliminação da diferença. Para tanto, basta lembrar um pouco as intolerâncias, discriminações etc. A educação deve decidir qual a sua tarefa: a de tornar igual ou a de abrir espaço para a diferença. A escola, nos mostra Foucault, produz sempre o sucesso e o fracasso. A “criança problema”, aquela que foge à sua regra de sucesso previamente traçada é seu paradigma.

A aprendizagem, como os sistemas pedagógicos têm apresentado, é um programa feito para tornar igual. Gil Amâncio, brincante e artista, contou-me uma história (não importa que seja comprovada ou não): no antigo Egito os homens carregavam as pedras nas costas, enquanto as crianças brincavam de carregar pedras fazendo-as rolarem por galhos de árvores... As crianças estavam à frente dos adultos, que não podiam olhar para o que elas faziam. E isso porque têm a necessidade de tornar os pequenos iguais aos adultos. Todos nós sabemos a que preço nos tornamos adultos e iguais.

A questão, portanto, passa a ser: a escola consegue lidar com a diferença? E a que preço?

Experimentação é uma questão de tomar o real como sendo um lugar de não-modelos, de engendramento de singularidades, de não comparação. Quando as crianças correm pelos espaços, toda sorte de desvio, colisão e invenção ocorrem. Nesse plano, elas entram em interação com o mundo. Ninguém sabe o que vai acotecer. Nem as próprias crianças.

A pesquisadora em Pedagogia da Infância, Eloisa Acires Candal Rocha aponta no artigo A Pedagogia e a educação Infantil, novos parâmetros o fortalecimento da relação com a família na gestão e no projeto pedagógico, bem como a ênfase nos âmbitos de formação relacionados à expressão e às artes. O brincar é uma ponte entre esses mundos: da arte, dos cuidados familiares e pedagógicos com a infância, dos afetos e percepções corporais.

É difícil para os adultos, em condições normais, entender as potências da cultura lúdica da infância. Não sabem lidar com as energias desencadeadas. Porém, aparece, aqui, a pergunta crucial: os educadores deveriam se envolver com as brincadeiras infantis?

Quem disse que educadores/educadoras, por não serem crianças, não podem brincar com elas? Por que se satisfazem, muitas vezes, em vigiar os espaços livres do brincar? Por que cumprem esse papel que a ordem econômica reserva para os que lidam com a infância?

No entanto, quando aderimos à produtividade a todo custo, modelo vingente para muito do que se pensa para a educação infantil, esquecemos que a própria sociedade se modifica sem parar. A adesão aos parâmetros de uma sociedade de acumulação, apesar de sempre justificada como necessidade do “real”, não deixa de ser um modo de viver a vida dos afetos, de organização da libido. E essa mesma aderência, quando reporta aos hábitos que tal sociedade cristaliza, torna suas ferramentas para a produção da vida (e de suas paisagens) inadequadas para o próximo momento.

E então, para que tipo de sociedade estamos querendo preparar nossas crianças? Muito do que já se ensinou deverá ser necessariamente desaprendido. E então, educador, como ficamos?

As crianças pequenas, dentro do programa de educação infantil voltado para o progresso a todo custo, não estão podendo dispor de sua tekné – do brincar como um modo de entrar no mundo – que é realmente e, de modo concreto, um instrumento de conhecimento. Difícil para nós é percebermos a riqueza desse conhecimento. Nisso, infelizmente, não fomos treinados. Mas nunca é tarde. Digo sempre: é preciso aprender com as crianças! Então, educador, consegue me explicar a tekné de uma criança de dois anos?

Se o brincar é da vida, ele possui um programa implícito que precisamos, do ponto de vista pedagógico, torná-lo explícito. Isso não quer dizer que é fazer do brincar um instrumento pedagógico, acrescentando-lhe uma finalidade extrínseca. Pelo contrário, é perceber seu interesse/desejo.

O brincar, como experimentação, inclui conhecimentos aprendidos. Mas os supõe, sempre, para serem desaprendidos. A experimentação é nômade: põe as coisas em movimento. Não se pode prever de antemão o resultado, exercitando-se antes um saber que se inventa a si próprio no ato de caminhar.

O brincar deveria ser tomado pelos programas de educação infantil como um modo de organização da experiência que contribui para a instauração de rotinas criativas.

Para tanto, é preciso adotar o ponto de vista de que o brincar não se encerra em modelos de experiência. Quando as crianças estão brincando, elas instauram um plano de vida que diverge de qualquer modelo. Nós, ao contrário, é que empurramos tais vivências para os contornos duros e molares. O brincar é uma agitação molecular. Do ponto de vista da libido, ele é polimorfo. Do ponto de vista do conhecimento, ele é pura curiosidade e invenção.

Mesmo se a criança repete nas suas brincadeiras, por exemplo, quando sempre procura num mesmo lugar a outra que se esconde – isso não é conservadorismo. A criança, mais do que qualquer um, sabe que é preciso um círculo de repetição do desejo. Mas, no centro apaziguador disso, ressaltam Deleuze e Guattari na obra Mil Platôs, sempre há motivos e contrapontos. Você já pensou que a trajetória de uma criança no espaço pode ser música? Por que os educadores não são treinados na ampliação da sensibilidade em vez de serem apenas os que vigiam e tomam conta? Em que medida eles se permitem serem modificados por um olhar-criança?

Quando numa rotina escolar as crianças pequenas vão para o pátio ou para outro lugar em fila, que tipo de mundo ou paisagem isso produz? A de uma ordem que resiste à agitação caótica da vida. Só pode fracassar, obviamente. Ao contrário disso, se as crianças vão caminhando livremente, elas colidem umas com as outras, inventam desvios, linhas de errância, descobrem mundos e produzem paisagens. Ahh... isso dá muito trabalho para aqueles que lidam com a educação infantil. Não basta vigiar. Tem que caminhar junto.

As rotinas escolares são modos de repetição que geram um chão para as crianças. A questão reside em pensá-las como meios de incorporação de um pouco de agitação molecular em nossas vidas. Isso supõe encontrar as motivações intrínsecas às próprias atividades. As crianças estão, nessa fase, explorando o mundo de um modo múltiplo, conectivo, molecular, sensível e não hierárquico. Cabe à educação infantil favorecer essa busca de conhecimento inventivo e criador. O brincar mostra os caminhos.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

O brincar e o corpo: um plano experimental para o Teatro-Educação




“O corpo em movimento, na sua agitação emocional e criativa, não é admitido na escola senão durante o ‘recreio’ quando o professor vigia e a rigor observa, evitando misturar a sua autoridade a esses jogos pueris. É a vida muito tempo controlada que explode. A nós, é precisamente essa vida, esse movimento que interessam, e com os quais queremos trabalhar porque são a única expressão verdadeira da criança”. Lapierre e Acouturier[1]

O brincar corporal e exploratório, esse o plano experimental para o Teatro-Educação. Quando comecei a trabalhar com crianças numa proposta não diretiva, fui tocado por algo que passou a me perseguir o resto da vida: o corpo em movimento e sua expressividade. No entanto, esse plano intensivo é de difícil assimilação pelos projetos pedagógicos, quando o conhecimento é tomado exclusivamente no seu aspecto racionalista. Não quero, no entanto, advogar uma proposta irracionalista. Não precisamos viver nesse binarismo. Ao contrário, seguindo o mestre compositor Koellreutter, eu diria que se trata antes de uma proposta a-racional.

Lapierre e Acouturier são dois autores que podem inspirar, em muito, a criação de um plano experimental que envolva o brincar corporal. Independente da perspectiva de psicomotricidade relacional e sua prática, o que propôem é uma ponte entre o sistema voluntário e involuntário. O brincar é essa ponte. No caso, trata-se de retomar contato com a via do tônus corporal.

Entretanto, a maior parte das teorias e práticas de Teatro-Educação têm por base a idéia de representação. E isso, para uma educação de base racionalista e logocêntrica, é um prato cheio. Ora, a arte não foi feita para tornar-se um instrumento de aquisição de estágios de desenvolvimento mental. Antes disso, ela é um modo de conhecimento que se realiza pela singularidade. Isto é, pelo desigual.

A via do corpo que brinca é a da sensibilidade. Há inteligência nisso.

De Lapierre e Acouturier tirei essencialmente o contato dos corpos mediados por objetos. Os exercícios criados a partir disso permitiram-me descortinar um mundo de micro-sensações, envolvendo um plano de criação dotado de grande plasticidade. Um desses exercícios é o que faz uso de panos, por exemplo: as crianças criam a partir da relação mediada pelo uso dos objetos. Seria algo como deixar que o corpo conte a história - sem mímica, apenas porque está em envolvido com o que o afeta. Em vez de enfatizar a idéia do teatro como representação, passei a buscar nele a vida do movimento, da plasticidade, da sensorialidade. O que me levou às pesquisas em improvisação, dança contemporânea e teatro físico e pós-dramático.

Podemos chamar esse plano de experimental corporal de pré-reflexivo. E é nessa explosão da vida que ocorre no brincar não-dirigido que encontramos as forças expressivas da criança. Não há dúvida alguma: antes de querer ensinar teatro para crianças, procuro aprender com elas. E é isso que levo para adolescentes, atores e bailarinos. Voltar à vida do corpo.

O brincar exploratório e sensível da criança apresenta uma cultura que se organiza como jeito de corpo, como vivência tônico-muscular. A pergunta que fica: a criança que brinca precisa de aprender teatro? Afirmo que não - vejaTeatro, Educação e cultura do brincar . Ela precisa de espaços e desafios, de artistas-educadores ou de educadores sensíveis que possam abrir espaços para o brincar e acolher suas criações livres. E isso é um modo de teatro. O que entra em ressonância com os teatros físicos. O que dificulta esse caminho favorável ao brincar é, de um lado, a predominância do teatro-representação (racionalidade, oratória, comportamento social aprendido, regras e discursividade). Ao contrário, proponho um teatro-experiência (a-racionalidade, ênfase na abertura perceptiva, volta à sensorialidade como um plano de inteligência e conhecimento).

Referências:

[1] Lapierre e Acouturier - Simbologia do Movimento - Ed. Artes Médicas - Porto Alegre.

Imagem: Portinari - Meninos Brincando

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Espaços do brincar

Paul Klee: Rising Sun














Quando visito uma escola de educação infantil, a minha atenção dirige-se imediatamente para os espaços reservados para o brincar.

Muitas vezes, os espaços estão já pré-figurados, de modo que as crianças apenas devem se encaixar neles. A amarelinha desenhada em tamanho pradão, os carrinhos ou brinquedo industrializados, e por aí vai...

Não é saudosismo, mas necessidade de sobrevivência de nossas crianças e, por isso mesmo do povo do futuro: que hajam quintais!

Terrenos baldios e quintais (e, num outro tempo, as ruas) foram os espaços livres de descoberta e imaginação para muitas crianças. O capitalismo ainda não as havia descoberto como sujeitos para o consumo. Assim, largados ao léu, podíamos correr, brincar, inventar e habitar mundos.

As escolas de educação infantil, muitas delas, cederam ao capitalismo na sua descoberta do filão infância. E assim povoam os espaços de objetos já configurados para a brincadeira.

Há uma sala vazia, com um baú ao fundo, cheio de objetos variados? É importante que seja vazia, que se possa correr, cair, rolar etc. Mas, na economia escolar, uma sala vazia parece desperdício. Ora, o brincar é puro desperdício - é luxo dos sentidos. E não vale a pena para o capitalismo, assim como para a sujeição das forças da vida à princípios transcendentes (objetivos traçados pelo comprometimento adulto com esquemas de aprendizagem fechados etc.), abrir espaço e tempo para os sentidos. Em primeiro lugar, porque implica em deixar de consumir e, em segundo, porque algo fugirá do controle!

Há espaços externos que permitem interações diversas? Há vãos livres?

Os brinquedos de subir e trepar, as cordas, os balanços, são definições prévias, mas configuram desafios físicos. O que eu questiono é o mundo pronto e pré-fabricado que se dá às nossas crianças. O mundo já vem pronto. Ao contrário disso, o brincar é a re-invenção do mundo. A sua adoção, para pensar com Bernard Stielgler, em suas singularidades. O consumo, ao contrário, ou a cultura que Stilegler chama de hiperindustrial, quer transformar as singularidades em padrões existenciais. Curiosamente, as crianças apropriam-se de objetos e arquiteturas produzidas como padrão e as pervertem completamente. Transformam seus usos. Porém, alguns projetos pedagógicos não entendem essa dinãmica e passam a já pré-figurar o desejo de transformação, próprio da infância.

Voltando a adentrar nos espaços de uma escola, eu me pergunto: há árvores? Árvores são o que há para a imaginação infantil. Encontra-se um pouco de terra?

E, afinal, a grande pergunta: os educadores que "tomam conta" dos espaços dedicados ao recreio foram educados para extrair conhecimento do ato de brincar? Estão preparados para entender cultura da criança como um modo de habitar o mundo, uma via de pensamento sensível, com seus traços expressivos e suas configurações energéticas?

Referência:

STIELGLER, Bernard. Reflexõies (não) contemporâneas. Organização e tradução de Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007.

domingo, 6 de maio de 2007

A roda que gira por si só

Paul Klee, Angel full of Hope, 1939

Friedrich Nietszche, pela boca de Zaratustra, menciona três transformações do espírito: “como o espírito se converte em camelo, e de camelo em leão, e de leão, por fim, em criança”[1].

O espírito depara-se inicialmente com o seu senso de dever, com a pergunta pelo que deve carregar. Porém, uma segunda transformação se impõe: é preciso transformar-se em leão, “conquistar sua liberdade como se conquista uma presa”. Diante do “tu deves” o leão diz: “eu quero”. Não basta, portanto, ao ser humano admitir a existência dos valores, reconhecê-los - é preciso criar novos valores.

Mas o leão não consegue criar novos valores. Ele conquista a liberdade, enfrentando o “tu deves”. Com seu poder e sua força o leão é capaz de estabelecer condições para a criação de novos valores, superando a etapa do camelo que se contenta em carregar o mundo nas suas costas e garantindo a nova transformação do espírito, que é a criança. Entretanto, pergunta Zaratustra, “que é capaz a criança que nem sequer o leão pode fazê-lo? Porque haveria o jovem leão de se transformar em criança?” Não seria suficiente a força e o ímpeto da fera que conquista sua liberdade? Zaratustra, nos diz que a criança é “o esquecimento, um novo começo, um jogo, uma roda que move por si mesma, um primeiro movimento, um santo dizer sim”. Este é, para Nietzsche, o que é próprio do jogo de criar: viver no perpétuo estado automotor. Somente transformando-se em criança poderá o leão, que já conquistou sua liberdade, dominar o jogo de criar - esta roda que se move por si mesma.

É na experiência do brincar que podemos entender melhor uma atividade com motivação intrínseca - o que faz uma roda girar por si mesma. No modo como a criança apropria-se da experiência através do ato de brincar encontramos fortes intuições desse estado: o do ser que brinca.

[1] Nietzsche, F. - Assim Falava Zaratustra - Alianza Editorial - Madrid, 1972.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Um modo de habitar o mundo: o brincar

Paul Klee: Som Antigo.



"O brincar é uma poiesis (do grego: produção, fabricação): – uma poética – abertura de mundos na vida cotidiana. O poeta é este que abre mundos – fabrica ficções - e sua matéria pode ser som, imagem, palavra escrita, movimento, pedra, objetos abandonados..".

"Quando as crianças brincam com o corpo, elas estão narrando. Diante de uma sociedade como a nossa, “logocêntrica” e, podemos dizer, “adultocêntrica”, é muito difícil apresentar o brincar corporal em termos de narração do viver."

"O brincar nos ensina que podemos nos relacionar com o corpo, com a natureza externa e interna, e ainda com os outros seres humanos, para além dos ditames da sobrevivência restrita a uma relação puramente instrumental. Quer dizer, para além de uma relação onde o outro é apenas um instrumento, um meio, para meus fins. Para entender isso, a educação de crianças teria de abrir mão de sua relação meio-fins, quer dizer, puramente instrumental: acreditar que o brincar somente tem direito à existência pedagógica se puder servir para ensinar algum conteúdo programático. Ao contrário, é por si mesmo e unicamente por si que o brincar pode atuar pedagogicamente. Para tanto, é preciso escutar o que o brincar e sua cultura nos estão trazendo."

"A poética do brincar se apropria dos refugos da economia da sobrevivência. Seus espaços vazios, terrenos baldios, detritos, e toda sorte de materiais são re-apropriados – o mundo é habitado. Tudo isso é possível por que, para a cultura da criança a sensibilidade é algo que não pode simplesmente ser contornado. Para a criança, não se pode viver num mundo já dado, ela o habitará e nesses objetos, produtos residuais – abandonados ou em fase de abandono temporário porque ainda não servem para nada – reconhecerá, como diz Walter Benjamin 'o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas' (1).


Obs. Trechos extraídos de um texto que escrevi em 2002, intitulado O Brincar como um modo de habitar o mundo.


BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação – Coleção Espírito Crítico – São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.

sábado, 31 de março de 2007

A função do recreio na educação infantil: lembranças de um recreacionista I

Qual a função do recreio na educação infantil?

Pensar sobre esse tópico envolve também discutir as oposições clássicas que o processo de modernizaçã das sociedades produziu: trabalho X lazer. E a escola não cessa de reproduzir essa divisão. Um binarismo que foi produzido pelo mundo do trabalho, diga-se de passagem.

O primeiro registro em minha carteira de trabalho me definia assim: recreacionista (1). Era uma escola infantil e eu deveria me dedicar ao momento em que as crianças brincam livremente no pátio. De um modo diferente dos professores, que ensinam uma matéria, o recreacionista é um profissional que cuida do recreio. Mas o que significa isso, o recreio, num projeto de educação infantil?

O que as educadoras (2) que estavam à frente do projeto pensavam era, justamente, superar a divisão clássica entre trabalho e lazer. O brincar era visto como uma forma de trabalho da criança e, como tal, deveria ser encarado. A proposta não era a de ensinar alguma coisa a alguém. Haveria que ocupar os espaços do recreio e, potanto, fazer dele não a oposição ao trabalho, mas um outro tipo qualificado de trabalho.

Estava começando a fazer teatro. Não havia nenhuma teoria. Nenhum conhecimento prévio. Bastava que acompanhasse as crianças, que estivesse ali com elas, de modo não dirigido.

Um quintal com areia, terra, um pé de goiaba e um pé de jabuticaba. Uma grande mesa. Meninos e meninas de 04 a 06 anos.

As crianças se envolviam com terra, areia, objetos diversos, contato corporal. A minha função, como recreacionista, não era a de criar uma ordem, na modalidade de jogos estruturados, em termos de uma atividade dirigida. O desafio era o contrário disso: envolver-me com as atividades livres das crianças, sem conduzí-las, descobrindo seu dinamismo próprio. E o filósofo Gilles Deleuze (3) fala de um plano de dinamismos, de velocidades e espacializações, de circulação do desejo, que é sempre um plano virtual, que não se opõe ao real, mas sim ao atual.

E como isso pode ser feito em tornar-se criança? E pode um educador torna-se criança?

Numa primeira instãncia, eu entrava em contato com a minha infância. Numa segunda instância, eu era introduzido, pelo desafio e coragem das educadoras e pelo convívio com o brincar, num processo novo de pensar e agir: a atividade que não se volta para um fim extrínseco a ela mas consitui, em si mesma, o seu próprio fim. Fui, posteriormente estudar isso em Kant e Fichte. Uma diferença que o brincar proporciona: astúcia da vida frente à violência do ato de tornar-se adulto.

Um educador, quando encontra-se com a cultura lúdica da infância, entra em contato com o que o filósofo Gilles Deleuze chama de bloco de infância: um fluxo de sensações que não se enquadram em nenhuma visão linear e cronológica do tempo (4).

Descubro, hoje, que naqueleintenso movimento, de aparente desordem, havia ordem. Não falo de uma ordem estável, mas sim das ressonâncias do brincar exploratório e sensível como os sistemas auto-organizados - tema ao qual tenho devotado uma atenção maior. Enfim, um caos de criação contínua, que os adultos têm dificultade de entender. Não porque não possuem acesso a um possível mundo mágico. Muito mais porque não foram treinados a ver.

O que os educadores têm aprendido sobre o brincar? Como o têm exercitado? Alguém me dirá que a escola não foi feita para o brincar, mas para a aprendizagem. E nisso recomeçam os problemas: uma aprendizagem que exclui o brincar justamente porque, entre outras coisas, está comprometida com os nexos sociais a que a escola deve corresponder. No máximo permitido, o brincar é aceito desde que cumpra um tarefa que lhe seja extrínseca: ensinar algo. Não que vá discordar de que o ensino possa ser mais lúdico, mas sim de não se permitir que a ludicidade mostre a que veio e que funções cumpre para um mundo mais belo.

Isto é arte? A pergunta perdeu o sentido. A arte não.

Não vou passar por essas explicações, como se fosse preciso, para se iluminar, empurrar num envelope achatado um mundo de fabulações pela porta estreita dos racionalismos.

Mas é necessário definir, sob a pena de passar por irracionalista: trata-se de um reencantamento do concreto.

E quais são as implicações desse plano de lembranças?

1. O brincar não é uma descarga de energia, mas uma cartografia.

2. É um modo de conhecer o mundo e a si mesmo. Mas de tal modo que um e outro são continuamente reiventados.

3. O brincar é um modo de habitar o mundo.

4. No recreio, os educadores especializados deveriam: a) estudar aplicadamente o que as crianças estão ensinando; b) analisar os ritos infantis; c) pesquisar o modo como as crianças adquirem conhecimento e inventam o mundo; d) entender os relacionamentos coletivos e individuais, as formações de grupos, as zonas de vizinhança, as matilhas, as multiplicidades; e) estabelecer conexões com os sistemas auto-organizativos e meta-estáveis. Complete a lista...

Enfim, é no momento do recreio, de uma atividade livre e não dirigida, que podemos entender a sofisticação que é o brincar.

Mas, enfim, qual o sentido de um recreio num programa de educação infantil? Ali, naquele momento inicial, quando me deixei levar pelo brincar da criança em vez de conduzí-lo (como viria a me forçar, mais tarde, em diversos momentos), encontra-se a resposta. Há nisso, entretanto, todas as possibilidades de misturas e gradientes, passando de um brincar mais livre para um mais dirigido e vice-versa. Não há regras, apenas espaços para a experimentação e a criação.

Referências:

(1) Belo Horizonte, Escola Balão Vermelho, 1974.
(2) Maria Helena Latalisa, Idêda Brito e Bete Lobato.
(3) DELEUZE, Gilles. O método de dramatização, in A ilha deserta e outros textos. Editora Iluminuras: São Paulo, 2006.

(4) Virgínia Kastrup aborda as concepções cognitivistas e estruturalista da cognição, mostrando a diferença dessa concepção para a de Deleuze e Guattari que, a partir de Bergson, criam um conceito de infância como contemporaneidade e não mais como algo retido num tempo cronológico. Conferir: http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/188/18813306.pdf

sexta-feira, 16 de março de 2007

Teatro, educação & cultura do brincar

Este blog insiste nas conexões entre arte e a cultura do brincar. Um dos temas a que venho me dedicando é o do Teatro na Educação. Nessa perspectiva, o brincar possui diversas funções. No contexto da Educação Infantil, algumas práticas-pensamento podem ser agrupadas do seguinte modo:

1. Uma das práticas mais comuns é a que considero ser um modo equivocado de trabalhar teatro com crianças pequenas: os teatrinhos escolares.

Essa prática, a dos teatrinhos escolares, caracterizam-se por expor as crianças pequenas diante de uma platéia, com representações de papéis, ações marcadas e falas previamente estabelecidas. São modos de trabalhar com a criança que ignoram o mundo de cultura das crianças e seu poder de fabulação.

A fabulação infantil é um modo de habitar o mundo e se dá através do brincar. Ela vive num contexto de vida. São as brincadeiras de quintal, de rua, ou de espaços que sobram para a interação livre e espontânea. Quando menino, por exemplo, brincava no chão quente do nordeste de Minas, vendo os retirantes passarem nos caminhões, fugindo da seca. O nosso mundo era uma mistura de imaginação e experimentação sensível da concretude do mundo: o zunir das tanajuras, a chegada da chuva, os brinquedos feitos de refugos da indústria (latas, etc.), a temporalidade do mundo circundantes (bolinha de gude em terra seca, finca em terra molhada, pipa em época de ventos). Nesse modo de habitar o mundo (que é o brincar), o fazer era puro sentido. De repente, fui para a escola. E representei uma peça de Natal. Estava diante dos outros. O que fazia, eu não sabia do seu sentido intrínseco. Chamo isso de teatrinho escolar.

Os teatrinhos escolares equivocam-se porque a criança pequena não partilha a chamada comunicação teatral. Uma ferramenta sofisticada. Porém, não universal. Apenas um modo de expressão e criação. Nem melhor e nem pior que os outros.

Ao contrário, como o bem demonstrou o inglês Peter Slade, as crianças possuem um modo próprio de fabular dramaticamente. Ele chama de jogo dramático infantil. Uma arte que existiria por direito próprio e que não é nem um veículo para o ensino de conteúdos escolares e nem uma derivação do teatro.

2. O brincar (e a fabulação infantil) como veículo pedagógico ou como etapa do desenvolvimento cognitivo.

Nesse modo, o brincar imaginativo e fabuloso da criança é reconhecido apenas como uma etapa do desenvolvimento cognitivo: as atividades da criança pequena não são vistas como expressão e por isso pertinentes aos problemas da arte, mas sim como veículo para aprendizagens. O brincar não é reconhecido em sua autonomia. Somente entrana escola servindo a um fim extrínseco a ele mesmo.

3. O Teatro-Educação baseado em jogos dramáticos e jogos teatrais.

Esse plano instaura um procedimento mais adequado: reconhece o valor da arte e da criação na educação infantil. Separa duas modalidades de criação, conforme a idade da criança: o jogo dramático infantil das crianças pequenas, com suas características de faz-de-conta, e o jogo teatral, voltado para o ensino da comunicação teatral e de suas ferramentas. No primeiro, concernente ao universo do faz-de-conta, estuda-se principalmente Piaget , Peter Slade e outros.

Já o jogo teatral é uma combinação de simbolismo e regra. Estamos justo no plano do jogo de regras. Trata-se de uma tentativa de iniciação teatral, em termos de Arte-Educação. Nesse caso, as crianças já estão numa etapa de desenvolvimento, segundo Piaget, em que há compartilhamento do símbolo. Portanto, pode-se dar para as crianças as ferramentas de uma comunicação teatral.

Viola Spolin tem sido a principal inspiradora desse plano. No Brasil, sua tradutora e grande divulgadora é a artista e professora Ingrid Dormien Koudela que, inclusive, traçou relações entre a artista-pedagoga e os conceitos de Piaget a respeito do simbolismo lúdico e da construção das regras.

4. A linha da exploração sensível do brincar.

Ela é corporal, experimental e tem por paradigma a cultura do brincar e sua relação com a infância. É o que este que lhes escreve defende.

Como mostrado em outras postagens, essa linha busca conexões entre o brincar, a corporeidade e a experimentação artística.

Não parte de estruturas e de regras. Parte da experimentação, da exploração sensível, proporcionadas pelo brincar corporal. Está entre dança e teatro.

O que esse plano trabalha:

- Não ensina teatro ou qualquer técnica às crianças pequenas. Não deriva seus procedimentos de qualquer noção de comunicação teatral;

- Não parte do plano figurativo, mas do pré-figurativo, segundo o maestro, compositor e educador, Koellreutter;

- Tem no brincar e na criança pequena seus paradigmas;

- Realiza conexões com a cultura popular brasileira, vista sob sua rebeldia inata, sua ritualização, sua fabulação, ritmos e modos de habitar o mundo (mas sem torná-los capturáveis pelos regimes de significação e representação).

- Interassa-se mais pelas linhas de errância do brincar e menos pelo jogo-de-regras. Há ressonâncias dessas linhas com os sistemas auto-organizativos, que incorporam elementos de caos (brincar exploratório) e que diferem dos sistemas fechados e estruturantes (jogo-de-regras).

São convites para artistas decriação cênico-corpórea e educadores rebeldes inventem suas próprias alternativas aos sistemas de Arte-Educação. Renato Cohen foi um dos artistas que trilhou esses caminhos, apontando para os procedimentos working in process na criação cênica. Uma pesquisa que poderia encontrar conexões com os procedimentos lúdicos.

Referências:

SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978.
SPOLIN, V. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1998.
________. Jogos teatrais na sala de aula. São Paulo: Perspectiva, 2007.
DORMIEN, Ingrid K. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 2001.
COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
_____________Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.
_____________ e GUINSBURG, J. Do teatro à performance: aspectos da significação da cena. In: SILVA, Armando Sérgio da (Org.). J. Guinsburg: Diálogos sobre teatro. São Paulo: Perspectiva, 2002