terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Linhas de errância

Seja na criação cênica ou na pesquisa em arte-educação, sempre tomo por tarefa observar crianças brincando.

O mapa: a pesquisa do corpo que brinca.

Outro dia, vi dois meninos brincando nos jardins descobertos de um centro comercial, numa manhã de sábado, vigiados por uma moça que deles cuidava. Um dos meninos brincava com uma espada e uma fralda amarrada nas costas e, vez por outra, interagia com o pequeno escorredor que ali estava. O outro, porém, não se integrava a esses usos do corpo e da imaginação, disparando antes a correr pelo espaço aberto. Tinha os cotovelos quase encostados nas costelas, os braços se abrindo meio trêmulos, como asas de passarinho. De repente, parava e volta a correr em outra direção. Ele traçava linhas de errância. São linhas que não fazem conexão com os nexos imediatos de sentido que configuram nossas experiências.

A moça que tomava conta dos meninos correu desesperadamente no encalço do menino e o recolocou ao lado do irmão. De nada adiantava, pois ele logo saia correndo, concebendo nova linha de errância.

Descobri algo novo sobre a cultura do brincar.

Um movimento que cria outras possibilidades de desenho no tempo-espaço. São linhas de errância. Deleuze e Guattari freqüentemente falam sobre as linhas de errância e dizem tanto dos movimentos que as crianças criam, que por por momentos desnorteiam as referências das linhas costumeiras, quanto das crianças autistas.

Com o movimento daquele menino, descobri coisas novas sobre o movimento corporal. A precipitação do sentido num plano que não pertence ao do neurótico. Isso diz respeito, também, à dignidade de outros modos de ser. Não posso deixar de dizer que há um encanto do brincar do menino com a fralda amarrada às costas e sua espada cortando ventos inimigos. Quem não se deixa tocar por isso? Porém, no movimento do outro menino, instaura-se outro plano, menos reconhecível: uma trajetória de errância, sem significado imediatamente perceptível - ou melhor, que rompe com as significações. O plano do menino que dispara a correr num vácuo de espaço sem finalidade aparente (mesmo dentro do universos do brincar).

Então, poeta/ator/bailarino, você me traça um linha de errância?

Deleuze e Guattari(Mil Platôs, vol. 3) referem-se às linhas de errância dos movimentos das crianças autistas:

"Fernand Deligny transcreve as linhas e trajetos das crianças autistas, faz mapas: distingue cuidadosamente as 'linhas de errância' e as 'linhas costumeiras'. E isso não vale somente para os passeios, há também mapas de percepções, mapas de gestos (cozinhar ou recolher madeira), com gestos costumeiros e gestos erráticos. O mesmo para a linguagem, se existitur uma. Fernand Deligny abriu suas linhas de escrita para linhas de vida. E constantemente as linhas se cruzam, se superpõem por um instante, se seguem por um certo tempo" (p. 77).

Trata-se, portanto, de linhas (linhas duras e molares, linhas flutuantes e linhas de fuga). Somos compostos por linhas, definem os pensadores.

Não que o brincar da criança neurótica (reconhecível por nós) deixe de ser interessante. A perspectiva é, entretanto, outra: trata-se da dignidade de uma linha de errância que foi vista, quase sempre, como esando à margem dos processos de significação e, por isso mesmo, sem importância para a cultura.

Ao contrário, por estarem mesmo à margem dos regimes de significação, é que tais linhas de errância não só denunciam o fator inerentemente errante de nossas construções mais racionais, apesar de sua lógica molar, dura e pretensamente não fraturada, mas também produzem novas potências criativas.

Não vai aqui nenhum elogio de uma possível desrazão ou espontaneísmo da infância como modelo de criação. Não há modelos. No entanto, penso com Deleuze e Guattari: trata-se de investir na arte como domínio artesanal. E o brincar é o domínio do fazer criativo que a criança guarda, cultiva e nos oferece em primeira mão. O brincar tem tudo a ver, principalmente se tivermos em mente que tornar-se adulto é, em muitas culturas, submeter-se a uma realidade que, não deixando de ser uma invenção, aparece como totalmente objetiva.

As linhas de errância ocorrem tanto no brincar das crianças neuróticas (quando produzem um movimento não reconhecível) quanto nas crianças autistas (e nestas, talvez, estejam como nervuras expostas na experiência cotidiana).

Abro, portanto, a primeira página desse blog com essa anotação sobre as linhas de errância do brincar. Outras virão.

Bibliografia:
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1996.

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