quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Brincar e jogar: diferenças

Numa conversa com Gil Amâncio, músico, artista de criação intermídias e brincante, surgiu a diferença entre o caráter exploratório do brincar e o jogo.

Uma coisa que descobrimos: o brincar põe a vagar. Gil relatou uma observação sua: dois meninos estavam andando a esmo numa rua. Vagavam para lá e para cá. Depois, acabam por se sentarem no meio-fio da calçada. Não conversam. Apenas param no instante de um deserto temporal. Nada para fazer, nada que não possa ser feito. De repente um deles acha uma pedra e resolve atirá-la longe. O outro também faz isso. Por um momento, brincam assim, juntos. Depois se separam, sem mais, nem menos.

Noutra observação, de outra conversa, Gil relata que viu dois meninos brincando. Eles sustentam as suas ações de modo paralelo, sendo que um brinca com um carrinho e o outro corre de um lado para o outro. Eles estão e não estão no mesmo mundo. Para nós, isso é difícil de ser concebido. Não para as crianças, quando brincam.

Há errâncias no brincar.

Gil nota que começa uma negociação por linhas de força. O que atrair mais será o brincar junto que conhecemos. Uma conexão de um momento, mas que não estabelece normas e hierarquias. Cada um, mantendo sua linha de força, passa a atrair o outro. Não forçam isso. Apenas brincam. Em determinado momento, passam a brincar juntos.

Pude observar isso. Arthur, com seis anos de idade, viu num pátio enorme uma menina brincando com sua boneca. Ele me largou e começou a brincar com seu boneco nos murinhos. O que eles estão fazendo? Abrindo um espaço de percepção através do paralelismo (ou a-paralelismo, como sugerem Deleuze e Guattari, pelo fato de, num momento, as retas não se encontrarem) das ações. As crianças percebem-se pela própria ação, pela suas linhas de força (suas velocidades, suas lentidões) - tudo isso sendo um exercício de sensibilidade. Além disso, abrem um espaço entre as duas linhas de força. Há ressonâncias que começam (ou não) a serem exploradas. E podem produzir (ou não) uma conexão.

Há um vagar no ato do brincar exploratório.

O jogo, ao contrário disso, é uma estrutura. Ele já predetermina a relação. E também a matriz de significação. Não permite transformação. É outra história.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Um artesão do movimento

Num espaço aberto, observo de uma mesa, enquanto saboreio bem devagar um café, um menino com mais ou menos uns 05 anos, que brinca correndo em quase círculos. Há algumas poças de água, e ele corre em volta, algumas vezes passando muito perto, outras vezes pisando um pouquinho na àgua, de leve. O menino corre fazendo curvas bem amplas, para depois parar, quieto, assim, para nada. E então recomeça, tudo de novo.

Óbvio que somente uma criança faz isso, sem finalidade outra que não a própria atividade. Se fosse um adulto, seria no mínimo uma pessoa tida como anormal. Ou, então, um artista do movimento... O que é o menino, quando brinca (com) o corpo, senão esse artesão do movimento?
Não estou dizendo de um ofício, que o ofício do menino é brincar. Estou dizendo de um ser que interage sensivelmente com o mundo e que traça desenhos intensivos.

Seu avô – e tudo leva a crer que era – entra naquele espaço. Ou tenta. Vai em direção ao menino. Raro ver uma pessoa mais velha, assim, disposta a brincar a brincadeira de um menino. Também, como os meninos, os avôs se prestam para as atividades sem finalidades produtivas...

Os pais vão saindo, chamando, mas o menino não pára - continua a correr nesses amplos quase-círculos. O avô vai e imita um avião com os braços abertos. Ahh, acho que entendi: ele traduz o movimento do menino, suas curvas, em movimento de um avião. O avô quer dar significado ao movimento do menino.

O menino observa o avô. E não pára. Num momento parece que ia fazer como o avô fazia (imitar um avião), mas não, após um ínfimo de imitação – quase uma concessão, se entendi bem a “conversa” dos dois – o menino retoma os amplos quase-círculos.

O avô está encantado com o menino. Aproxima-se. Abraça-o. Traz para o menino o seu modo de brincar com o corpo do outro. O menino interage, copia o avô. Faz coisas com ele, como ele faz. Abraçam um ao outro.

E o menino volta a correr, em trajetórias amplas, quase-círculos. Uma necessidade, no mínimo. Depois o avô some para um lado. Os pais reaparecem, buscando o menino. A família vai embora toda junto.

O brincar é isso: as pessoas o consideram algo próximo de um desperdício de energias. Não entendem que é um modo de habitar o mundo, um artesanato do movimento.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Carpinejar

"Envelheci,
tenho muita infância pela frente"

Fabrício Carpinejar

http://www.carpinejar.com.br/textos.htm

Koellreutter educador

Koellreutter educador – o humano como objetivo da educação musical - de Teca Alencar de Brito, é um livro que ultrapassa a exlusividade de um campo artístico para revelar um compromisso com a educação humanista, além de nos surpreender com pensamentos preciosos sobre a arte.

O livro é uma descrição dos estudos de uma educadora musical, Teca Alencar de Brito, com o grande mestre que foi Hans-Joaquim Köellreutter. Um mestre que, desde sua entrada na cena brasileira, nos anos 40 do século XX, modificou parâmetros na formação de nossos artistas e músicos. Uma revolução silenciosa e musical, expandindo-se por diversas regiões desse país, marcando muitas gerações. No seu livro, Teca apresenta suas questões e experiências sobre a educação musical, sempre com recorrências a Koellreutter, além do relato de uma oficina com o mestre, intitulada arte-jogo Fim de feira.

Educadores e artistas envolvidos com a dimensão humanista dos seus ofícios, com as questões que ultrapassam as fronteiras das linguagens artísticas, podem muito aprender com esse livro de Teca. O livro apresenta, entre outras coisas, uma preciosidade para os que se envolvem com a formação em arte, que é o conceito de pré-figurativo. O que vem a ser isso? Nas palavras de Koellreutter:

“Ensinar a teoria musical, a harmonia e o contraponto como princípios de ordem indispensáveis e absolutos é pós-figurativo. Indicar caminhos para a invenção e a criação e novos princípios de ordem é pré-figurativo.Ensinar o que o aluno pode ler em livros ou enciclopédias é pós-figurativo. Levantar sempre novos problemas e levar o aluno à controvérsia e ao questionamento de tudo o que se ensina é pré-figurativo.

Ensinar a hitória da música com conseqüência de fatos notáveis e obras-primas do passado é pós-figurativo. Ensiná-la interpretando e relacionando as obras-primas com o presente e com o desenvolvimento da sociedade é pós-figurativo.

Ensinar composição fazendo o aluno imitar as formas tradiconais e reproduzir o estilo dos mestres do passado, mas também os dos mestre do presente, é pós-figurativo. Ensinar o aluno a criar novas formas e novos princípios de estruturação e forma é pré-figurativo.”

O pré-figurativo, um termo emprestado das artes plásticas – e nisso Koellreutter nos mostra que não há fronteiras entre linguagens artísticas – é aquilo que é posto como anterior à figuração, precedendo-a enquanto momento aberto à investigação e ao estabelecimento de relações internas.

Na figuração, como nos esclarece o músico e aluno de Koellreuter, João Gabriel Fonseca, o artista se preocupa em representar um objeto já dado como tal à percepção. O que significa isso? Significa que a relação entre percepção e representação não se dá através de uma abertura do campo perceptivo, mas sim através de seu fechamento prévio.

O que o mestre Koellreutter propõe é uma caminho anterior à figuração – caminho de abertura do campo perceptivo. A inversão proposta por Koellreutter – buscar o momento da pré-figuração – provoca um grau de atenção maior para as percepções em curso. Penso que pesquisas em arte-educação serão mais potentes, no sentido de tornarem-se mais criativas e livres, se trabalharmos com o pré-figurativo, como propõe Koellreutter. Quando nos limitamos ao pós-figurativo não só condicionamos o campo da percepção como também limitamos o alcance do conceito de representação. Em termos de uma pedagogia do teatro, isso significa um adestramento do ser humano, um condicionamento do comportamento e não um caminho para descobertas. A prática das artes, seja na formação artística em contextos sociais, bem como nas modalidades profissionais, implica sempre na possibilidade de aprender a fazer refazendo.

É preciso ver que a arte contém uma energética. Assim, quando umacriança quando pega uma argila, ela não pode ser forçada a ir diretamente para a figuração, ela precisa sentir com o seu tônus, com a sua sensorialidade: ela quer pegar, amassar, socar, sentir enfim...

Nessa direção e segundoTeca, Koellreutter recomenda que se dê às crianças não necessariamente instrumentos musicais, mas todo e qualquer objeto que ressoe. Lembro-me de quando entrei para o antigo primário e ficávamos empunhando os instrumentos da bandinha, numa atitude ordenada, mas sem qualquer apropriação. Ninguém podia fazer ruídos. Nunca ocorreu um entusiasmo, um transe, o delírio de uma forma sensível tomando a gente.

Ao contrário disso, no pré-figurativo não nos limitarmos ao que é dado e está pronto – mesmo que seja um procedimento aceito e aprovado nos nichos de desenvolvimento histórico das artes. Mesmo nessa trilha historicamente desenvolvida, podemos vivenciar relações e nos permitirmos a isso.

Em nossa ânsia por resultados e numa visão de representações como formas prontas, dentro do universo do que já está dado, não deixamos que as crianças e os adolescentes apropriem-se dos caminhos de criação.

Termino com mais um tópico que me chamou a atenção: os níveis de consciência. Koellreutter fala de 04 níveis de consciência de espaço e tempo na história da humanidade: nível mágico (evocativo-vital, não métrico), nível pré-racionalista (de 500 a.C. ao século XIV –caráter místico, simultâneo e polifônico), nível racionalista (século XIV a início do século XX – tempo do relógio, formas selecionadas), nível a-racional (emerge na contemporaneidade – a-métrico, tende a imprecisão, é multidirecional).

Koellreutter mostra, assim, que a arte não pode ser entendida somente na perspectiva racionalista, na qual surge como arte propriamente dita (separada de outros âmbitos da vida), numa visão linear de progresso. Pois, afinal, o nível a-racional recupera muito do nível mágico e pré-racionalista.

Koellreutter ainda reitera a necessidade de abertura para as outras culturas, não se limitando a um único ponto de vista. As preciosidades não terminam por aí. A gente vai lendo o livro e fica agradecido a Teca por se realizar com essa pesquisa e divulgá-la, e a Koellreutter, pelos ensinamentos. Ele, que sempre mostrou a que veio, desde a década de 40, quando sacudiu a formação musical brasileira: é preciso continuar pensando e transcriando valores. A obra:

Koellreutterr educador – o humano como objetivo da educação musical. Teca Alencar de Brito. Ed. Fundação Peirópolis, 2001, 192pg.