A função do recreio na educação infantil: lembranças de um recreacionista I
Qual a função do recreio na educação infantil?
Pensar sobre esse tópico envolve também discutir as oposições clássicas que o processo de modernizaçã das sociedades produziu: trabalho X lazer. E a escola não cessa de reproduzir essa divisão. Um binarismo que foi produzido pelo mundo do trabalho, diga-se de passagem.
O primeiro registro em minha carteira de trabalho me definia assim: recreacionista (1). Era uma escola infantil e eu deveria me dedicar ao momento em que as crianças brincam livremente no pátio. De um modo diferente dos professores, que ensinam uma matéria, o recreacionista é um profissional que cuida do recreio. Mas o que significa isso, o recreio, num projeto de educação infantil?
O que as educadoras (2) que estavam à frente do projeto pensavam era, justamente, superar a divisão clássica entre trabalho e lazer. O brincar era visto como uma forma de trabalho da criança e, como tal, deveria ser encarado. A proposta não era a de ensinar alguma coisa a alguém. Haveria que ocupar os espaços do recreio e, potanto, fazer dele não a oposição ao trabalho, mas um outro tipo qualificado de trabalho.
Estava começando a fazer teatro. Não havia nenhuma teoria. Nenhum conhecimento prévio. Bastava que acompanhasse as crianças, que estivesse ali com elas, de modo não dirigido.
Um quintal com areia, terra, um pé de goiaba e um pé de jabuticaba. Uma grande mesa. Meninos e meninas de 04 a 06 anos.
As crianças se envolviam com terra, areia, objetos diversos, contato corporal. A minha função, como recreacionista, não era a de criar uma ordem, na modalidade de jogos estruturados, em termos de uma atividade dirigida. O desafio era o contrário disso: envolver-me com as atividades livres das crianças, sem conduzí-las, descobrindo seu dinamismo próprio. E o filósofo Gilles Deleuze (3) fala de um plano de dinamismos, de velocidades e espacializações, de circulação do desejo, que é sempre um plano virtual, que não se opõe ao real, mas sim ao atual.
E como isso pode ser feito em tornar-se criança? E pode um educador torna-se criança?
Numa primeira instãncia, eu entrava em contato com a minha infância. Numa segunda instância, eu era introduzido, pelo desafio e coragem das educadoras e pelo convívio com o brincar, num processo novo de pensar e agir: a atividade que não se volta para um fim extrínseco a ela mas consitui, em si mesma, o seu próprio fim. Fui, posteriormente estudar isso em Kant e Fichte. Uma diferença que o brincar proporciona: astúcia da vida frente à violência do ato de tornar-se adulto.
Um educador, quando encontra-se com a cultura lúdica da infância, entra em contato com o que o filósofo Gilles Deleuze chama de bloco de infância: um fluxo de sensações que não se enquadram em nenhuma visão linear e cronológica do tempo (4).
Descubro, hoje, que naqueleintenso movimento, de aparente desordem, havia ordem. Não falo de uma ordem estável, mas sim das ressonâncias do brincar exploratório e sensível como os sistemas auto-organizados - tema ao qual tenho devotado uma atenção maior. Enfim, um caos de criação contínua, que os adultos têm dificultade de entender. Não porque não possuem acesso a um possível mundo mágico. Muito mais porque não foram treinados a ver.
O que os educadores têm aprendido sobre o brincar? Como o têm exercitado? Alguém me dirá que a escola não foi feita para o brincar, mas para a aprendizagem. E nisso recomeçam os problemas: uma aprendizagem que exclui o brincar justamente porque, entre outras coisas, está comprometida com os nexos sociais a que a escola deve corresponder. No máximo permitido, o brincar é aceito desde que cumpra um tarefa que lhe seja extrínseca: ensinar algo. Não que vá discordar de que o ensino possa ser mais lúdico, mas sim de não se permitir que a ludicidade mostre a que veio e que funções cumpre para um mundo mais belo.
Isto é arte? A pergunta perdeu o sentido. A arte não.
Não vou passar por essas explicações, como se fosse preciso, para se iluminar, empurrar num envelope achatado um mundo de fabulações pela porta estreita dos racionalismos.
Mas é necessário definir, sob a pena de passar por irracionalista: trata-se de um reencantamento do concreto.
E quais são as implicações desse plano de lembranças?
1. O brincar não é uma descarga de energia, mas uma cartografia.
2. É um modo de conhecer o mundo e a si mesmo. Mas de tal modo que um e outro são continuamente reiventados.
3. O brincar é um modo de habitar o mundo.
4. No recreio, os educadores especializados deveriam: a) estudar aplicadamente o que as crianças estão ensinando; b) analisar os ritos infantis; c) pesquisar o modo como as crianças adquirem conhecimento e inventam o mundo; d) entender os relacionamentos coletivos e individuais, as formações de grupos, as zonas de vizinhança, as matilhas, as multiplicidades; e) estabelecer conexões com os sistemas auto-organizativos e meta-estáveis. Complete a lista...
Enfim, é no momento do recreio, de uma atividade livre e não dirigida, que podemos entender a sofisticação que é o brincar.
Mas, enfim, qual o sentido de um recreio num programa de educação infantil? Ali, naquele momento inicial, quando me deixei levar pelo brincar da criança em vez de conduzí-lo (como viria a me forçar, mais tarde, em diversos momentos), encontra-se a resposta. Há nisso, entretanto, todas as possibilidades de misturas e gradientes, passando de um brincar mais livre para um mais dirigido e vice-versa. Não há regras, apenas espaços para a experimentação e a criação.
Referências:
(1) Belo Horizonte, Escola Balão Vermelho, 1974.
(2) Maria Helena Latalisa, Idêda Brito e Bete Lobato.
(3) DELEUZE, Gilles. O método de dramatização, in A ilha deserta e outros textos. Editora Iluminuras: São Paulo, 2006.
(4) Virgínia Kastrup aborda as concepções cognitivistas e estruturalista da cognição, mostrando a diferença dessa concepção para a de Deleuze e Guattari que, a partir de Bergson, criam um conceito de infância como contemporaneidade e não mais como algo retido num tempo cronológico. Conferir: http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/188/18813306.pdf
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