quinta-feira, 22 de maio de 2008

Tempo de brincar de quê?





A infância tornou-se, em determinados momentos históricos e em alguns contextos sociais, detentora da memória lúdica humana. Ela conquistou essa memória porque os adultos estavam por demais ocupados com a produção e a reprodução da vida, deixando ao mesmo tempo às crianças um tempo mais livre, distante da sua vigilância.

Além de serem depositárias de uma memória que os adultos não podem, nas sociedades industriais, exercitá-la, as crianças reinventam a história humana. Inventam o tempo em que os seres humanos se envolvem corporalmente com o mundo. A criança fabrica o sentido e explora os sentidos antes de ficar memorizando abstrações. Entra em contato com a terra, deixando-a deslizar pelas mãos, sentindo o seu escoamento até fazer um filete comprido, quando é mais fina. Ou então socar, ajuntar, atirar ou formar, se é mais grossa e úmida. Muitos artistas continuam fazendo e por isso eles guardam uma estranha e aparentemente secreta sensação de felicidade e liberdade.

As brincadeiras infantis relacionam-se em muitos casos com o tempo, com o seu caráter de estação. Quando o que fazemos interage com o mundo físico natural e a sensibilidade não está embotada, a cada época uma onda varre o território e todos testemunham algo inelutável: é tempo disso, ou daquilo...

O brinquedo surge como interação com o entorno: em época de vento, empina-se pipa, em época de chuvas, joga-se finca, na seca o jogo de bolinhas de gude... Cada um depende de um tempo, que define as condições do território. Perguntei, no CIAME Santa Maria (1), para um grupo de pré-adolescentes, qual o brinquedo que se jogava em época de chuva. Acreditei que, num mundo de tanto cimento, ninguém acertaria. Imediatamente uma menina disse: finca!

O jogo de finca é feito por dois adversários que, com um objeto de ferro pontudo, fazem marcas no chão úmido, riscando de ponto a ponto, de modo a estrangular ou fechar o adversário, impedindo-o de movimentar-se. Para isso exige-se as condições concretas de um terreno bem definido: o chão recentemente molhado pela chuva, não muito mole, consistente o suficiente para segurar o ferro pontudo (ou facas, dependendo do caso) e macio para ser riscado e deixar marcas definidas. A poeira as apagaria e o chão seco faria o ferro pular sem fincar no chão. Trata-se de um jogo de pontarias, como o gesto de atirar facas.

O jogo principia pela disputa de quem joga primeiro (2). Para isso risca-se o chão horizontalmente, delimitando que dali ninguém passa. À frente, numa distância razoável e desafiadora, risca-se um traço vertical. Os jogadores atiram suas fincas: quem acertar no fio do traço ou mais próximo dele começa o jogo. Cada um desenha sua casa, feita por um triângulo riscado no chão. Começa atirando a finca dentro da casa e estabelecendo o ponto inicial. Sem poder ultrapassar aquele ponto, mantendo os pés sempre atrás dele, o jogador tentará atirar sua finca o mais longe possível, em direção à casa do adversário. Se a finca se firmar no chão, ele traça um risco que vai desse primeiro ponto dentro da sua casa até o ponto atingido. Se acerta, ele não pára de jogar, até que erre, cedendo a vez ao outro. Cada jogador deve, além disso, tentar atingir o ponto o mais próximo da sua linha, tentando fechar os caminhos do adversário e obter sua derrota o mais rápido possível. Ninguém pode cortar linhas. Se alguém contorna a casa do adversário e chega à sua própria casa, é vencedor. Lembro-me de que era permitido furar a linha do outro ou própria por um golpe de lado, cavando uma espécie de subterrâneo, mas sem levantar muita terra, deitar demais a finca ou esburacar os riscados.

Nesse jogo, os meninos procuravam pedaços de ferro das construções, cortavam e ficavam horas a fio afiando-os contra o cimento, até criar uma bela ponta. Esse era o nosso meio: as construções surgiam por todos os lados num bairro onde o lado selvagem e não explorado era ainda forte. Vi, na barragem Santa Lúcia, no começo dos anos 1990, quando ainda não estava pronta, um senhor fabricar para mim uma finca diferente: um pedaço de madeira (cinco dedos de um cabo de vassoura) com um prego na ponta. Assim, cada finca depende do material disponível pelo entorno. O jogo de finca requer um mundo próprio, que deve incluir a temporada de chuvas, do ponto de vista do meio físico, a existência de terrenos baldios e disponibilidade da infância para o tempo livre. As chuvas continuam, talvez um pouco perturbadas, mas os terrenos descobertos são cada vez mais raros e a infância não vive, de modo geral, em espaços públicos. O mundo de cultura da infância, com sua memória de invenções populares, encolhe-se cada vez mais.

A brincadeira de pipa envolve as condições climáticas de ventos constantes. Linhas tipo 10 e manivelas de madeira, fabricadas artesanalmente, já fizeram parte da aventura. Hoje, as manivelas estão cada vez mais ausentes, sendo substituídas por latas em que se enrolam as linhas. Os golpes nos vôos são mais usados, em contrapartida, quando as distâncias maiores e mais contemplativas eram mais consideradas nas manivelas.

Já as bolinhas de gude demandam o terreno seco, de poeira. A terra molhada se adere às bolinhas e impede seu livre curso. A terra seca, pelo contrário, solta pó de cada lance, sem aderir. Alguns jogam com buracos feitos com o calcanhar na terra. Nesse jogo, em que o objetivo é obter as bolinhas do adversário, demora-se num roteiro de regras complexas, de modo que o tempo se dilata e as habilidades se desenvolvem.

As crianças e adolescentes, principalmente estes últimos, quando podem brincar em espaços livres, desenvolvem uma relação sensível com o entorno que foge aos ditames da produtividade adulta. São nômades e caçadores, em busca de algo inusitado, que sirva para a aventura. O grupo cria sua justiça distributiva, ao compartilhar os produtos dos achados, ao colocar na roda as descobertas. Favorece o comércio com base na troca, no escambo.

Trata-se, desse modo, de uma outra economia. Tudo parte, sem dúvida, do corpo e das necessidades de conhecimento sensível. Os elementos são selecionados no entorno, seja de origem natural ou proveniente reaproveitamento de refugo industrial ou doméstico. Os rolimãs, sobras de rolamentos de veículos, disputadas no ferro-velho, deram origens aos carrinhos de madeira, que aproveitavam os calçamentos. A roda, por outro lado, com um arco de ferro guiando ou simplesmente sendo girada com as mãos diretamente, atravessaram épocas e mundos, dependendo o material daquilo que se torna disponível (3). Disso surge o poético: reunião do que não serve para nada, mas que sob um novo olhar configura um novo mundo. O brincar fabrica mundos. Enquanto pensávamos sobre brinquedos, ao sairmos do CIAME para irmos embora, um menino, que provavelmente já havia chegado em casa, passa correndo com um brinquedo inventado por ele. Era uma roda solta de um velocípede de plástico ou de brinquedo industrializado similar, cujo centro foi trespassada por um fio ou cabo de plástico, sendo que o menino girava a roda em alta velocidade.

O brinquedo é o mecanismo na sua função poética – ou seja, para além da sua função prática. Um brinquedo serve para brincar: para desenvolver habilidades que fogem ao controle do olhar produtivo, seja pedagógico ou econômico. Por isso o brinquedo pedagógico é redundante ou falso: não foi inventado por meninos e meninas. Não responde a uma cultura que vive de trocas sensíveis e imaginativas com o entorno. Não é memória dos povos. Não serve para encontrar tesouros de piratas ou bandidos.

Brinquedos e brincadeiras são coisas nos tempos e nos lugares. As crianças inventam seus territórios, fabricam mundos. São mundos achados e inventados. E eles estão no entorno, no nosso meio físico e social. Os adultos estão muito ocupados para encontrar coisas pelo caminho – tudo para eles é desvio. Já para os meninos e meninas, se para eles o mundo ainda é generoso, acabam achando coisas. Que parecem, misteriosamente, pertencer a um outro lugar, reluzindo em meio aos refugos como pequenos tesouros enterrados na sensibilidade do mundo. Deixam de ser meros utilitários que dormem no abandono e passam a pertencer a um tempo em que sobreviver e criar não são coisas necessariamente tão opostas.



Referências:

(1) Novembro de 1999 – Belo Horizonte. Os CIAMES eram espaços nos quais as crianças ficavam em horários que não o escolar. Houve um desmanche dessa política, principalmente porque os CIAMES não defendiam sua missão e qualificação em relação às crianças e jovens. No entanto, num contexto de pobresa e violência, alguns CIAMES desempenhavam papel importante, abrigando as crianças e alimentando-as, enquanto os pais trabalhavam. O aspecto mais frágil fica por conta dos conteúdos, da falta de qualificação do pessoal pedagógico e do pequeno ou quase nulo investimento do Estado.

(2) Falo evidentemente de minha experiência pessoal, em Belo Horizonte, no bairro Serra, nos anos de 1960. No CIAME Santa Maria (Nov/1999), uma menina me disse que jogava assim mas também de outro modo: ela fazia um quadrado subdivido em quadrados menores. Neles, tentava-se acertar a finca.

(3) Devo essa observação sobre os arcos a Lídia Ortélio.

Imagem: Portinari

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Jornal Dimensão: o teatro como exercício de liberdade

O jornal eletrônico Dimensão acaba de publicar uma entrevista comigo sobre a questão do teatro na escola intitulada Exercício de liberdade.

A edição n. 05 Ano I de março/abril de 20008 apresenta artigos como:

- Saci Pererê fez aniversário - de Cilza Bignoto
- Um lobatinho entre nós - de Else Mendes da Silva
- Brincando de ser folclorista - de Celso Sisto
- De olho nas estrelas - de Hélio Diógenes

Há, ainda, entre outros temas e artigos, uma reportagem de Bruna Oliveira sobre o trabalho com o teatro na escola, realizado pelo artista e educador Cauê Salles e alunos do Instituto Libertas: O Instituto libertas apresenta...