O brincar e a educação infantil II
As férias vão se encerrando e começam as preocupações de todos os pais: onde matricular crianças na faixa de até seis anos de idade.
Volto-me sobre as questões apresentadas numa postagem primeira sobre as relações entre o brincar e a educação infantil: o significado dos tempos e dos espaços para o brincar, o currículo escolar, a nossa visão sobre o desenvolvimento das crianças etc.
Desta vez, quero falar das escolas-quintal: estas são as fontes de uma nova visão sobre a função do brincar na educação infantil. Sentimento que compartilho com o blog Quintarola. Aliás, ficamos os dois blogs de falar escrever sobre esses espaços de vivência e aprendizagem livre.
Penso primeiro na questão da importância da escola-quintal para a educação infantil, tendo em vista a retomada da cultura lúdica da infância. Sobre que fundo aparecem tais espaços?
As crianças estão cada vez mais desprovidas de seu mundo de cultura. Quando falamos de cultura do brincar, referenciamo-nos primordialmente na cultura da criança. E criança tem cultura?Já discutimos isso em outras postagens (por exemplo, numa que abordo a questão da produção cultural para crianças).E relembro, aqui, a importância do pequeno grande livro de Clarice Cohn sobre o tema. O fato é que nossas sociedades industriais e consumistas desvalorizam essa cultura - e a escola tem participado disso. Como? Quando procura responder à necessidade de educar nossas crianças no paradigma da produtividade econômica (e do saber). Ou quando somente reduzem o brincar a ser um mero veículo para outros conhecimentos.
Porém, mais do que desvalorizar a cultura da criança, as atuais sociedades a descobriram como nova fonte de lucro. Até então as crianças eram deixadas nos livres, desde que não atrapalhassem a vida dos adultos. Quanto estivessem na idade certa, deveriam ir para a escola e adeus mundo de encantos e invenções! Por isso os quintais: lá, longe dos adultos, habitávamos o mundo!
A infância passou a ser parte do processo econômico: deixa ser produtora de cultura para ser somente uma consumidora. E a escola tem sido uma extensão natural desse paradigma. Basta ver os espaços internos das instituições: brinquedos industrializados aos montes, espaços cognitivos já delimitados e pré-formatados, falta de investimento nas vias da sensibilidade.
Dizem alguns educadores que a escola é lugar de aprendizagem e não de brincadeira. Não aprenderam - ou não podem aprender - que o brincar contém os elementos informais das estruturas essenciais do aprendizado - que apenas necessitam ser conduzidas e, mais tarde, formalizadas pela educação. Isso o que eu aprendi com Cláudia Souza, quando dirigia com Adriana di Mambro o Clic- Centro Lúdico de Interação e Cultura, em Belo Horizonte.
Os valores vigentes e circulantes fazem as cabeças de pais, educadores e mais ainda das autoridades responsáveis pela educação. Entre estes valores, a visão de que precisamos ocupar mais e mais a primeira infância com o peso da cognição. Quem sabe o meu filho sai de lá um "gênio", pronto para os "vestibulares" das "melhores" escolas de ensino fundamental?
Esquecem que existem os saberes pré-reflexivos, imanentes, abertos, em estado de potência, conectivos... Esquecem que nossa humanidade depende desses saberes de corpo, de sensibilidade, de apropriação do aqui e agora sem as coerções instrumentais (da natureza externa, da natureza interna e do outro).
As escolas-quintal. Meu filho mais novo estudou no Clic, uma escola-quintal. O que difere das outras? Em primeiro lugar, em não haver pressa em alfabetizar. Depois, na abertura para as vivências exploratórias e sensíveis, tendo a arte e o lúdico como trabalho essencial.
No Clic meu filho pôde curtir momentos para massagem, culinária, brincadeiras circenses etc. Ele permanecia na escola o dia inteiro e ainda sentia falta quando havia feriados e férias!
Este é um assunto polêmico. Um artista e amigo, parceiro da cultura do brincar, não quer que seu filho mais novo vá logo para a escola. Ele passa as manhãs com o garoto, e a companheira a parte da tarde. Ele faz questão de acompanhar e encorajar as aventuras do menino, desde o balanço no colo ao momento de pisar o chão. Mas não dá para generalizar: ele é um educador e não abre mão do tempo bem vivido. Quantos de nós podem se dar a esse privilégio? As escolas-quintal são a expansão dessa idéia: um adulto seguindo os passos da criança, deixando-a livre para experimentar o mundo, configurando seus tempos e espaços, oferecendo novos estímulos e desafios.
Uma das experiências mais radicais de escola-quintal é a Casa Redonda, criada por Maria Amélia Pereira, em São Paulo. Lá, são os adultos que seguem as crianças e não o contrário.
Uma escola-quintal é um espaço de invenção feito, em primeira mão, para as crianças pequenas e, em alguns casos, para as crianças maiores, também brincarem. Porém, há escolas que não se propõem a ser uma escola-quintal, mas que vão por esses caminhos, como o de evitar a carga cognitiva na primeira infância, sendo que, além disso, se responsabilizam pela passagem não apressada para a alfabetização e para as outras fases, como o ensino médio e fundamental. Um exemplo é o Instituto Libertas de Arte e Cultura de Belo Horizonte. Voltaremos um dia a esses espaços e o caráter lúdico-artístico-científico-cultural que assumem.
Para as crianças que ainda não se alfabetizaram, a escola-quintal, seja um modelo mais dirigido ou outro mais aberto, é o que traz para a infância o que ela está perdendo: o mundo de cultura produzido nas interações com o meio físico e social. É um espaço para os pais perderem o medo (de não verem suas crianças alfabetizadas aos cinco anos de idade) e as crianças conquistarem a coragem: da aventura humana.
Numa a sociedade em que o mundo de cultura da infância se vê cada vez mais encolhido e as crianças devem viver confinadas (o que passa a ser uma proteção e possibilidade de desenvolvimento), cabe criar e incentivar instituições abertas, que refaçam o caminho: de volta para a sensibilidade, para o aqui-e-agora de uma vida compartilhada.