sábado, 18 de abril de 2009

Novo endereço

Cultura do Brincar mudou para o novo endereço:



Os leitores e assinantes não se preocupem: em breve, os feeds serão direcionados para o novo endereço. Clique no endereço acima e faça uma visita.

Fazemos parte, agora, do domínio Rede Zero, idealizado e mantido pelo artista e webdesigner Marcelo Terça-Nada.

Aguardo você lá.

sábado, 14 de março de 2009

A crise econômica mundial e a volta para o brincar


Era noite e levamos as crianças para brincar na rua. São essas as condições atuais: é necessário que os pais estejam por perto. Quanto mais à noite!

Outro dia, o jornal dizia que no Bairro Vera Cruz, de Belo Horizonte, as crianças brincam nas ruas, as pessoas conversam nas calçadas e a violência é quase uma desconhecida naquele pedaço do mundo. Não é mais assim na maioria dos lugares. Éramos dois pais, uma menina, dois meninos e uma noite de um resto de verão.

Estávamos ali para curtir as crianças. Isso quer dizer: nenhuma pressa. E quando nos permitimos não fazer nada ou somos surpreendidos por uma lembrança emergente, entramos numa duração: tempos que coexistem. Temos aquele tempo-espaço para nós e o que pode acontecer. E nada melhor que a rua onde,atualmente moramos. Como quase todo lugar, passam muitos carros, mas não há um tráfego intenso e desumano.

Normalmente, oscilo entre interagir com as crianças e deixar que elas mesmas descubram o que desejam fazer. E num espaço-tempo entre as sugestões de algumas brincadeiras, além dos cuidados necessários como o aviso de "olha o carro!") acaba que eu e meu amigo comentamos sobre a crise mundial. Ele me diz que cem milhões de pessoas no mundo entrarão, inexoravelmente, no patamar da miséria absoluta. Isso sem falar no número muito superior daqueles que vão ficar muito pobres. Cita ainda números de demissões nas indústrias de São Paulo. Olhamos um para outro e para as crianças. Um buraco de noite se abre e nos perguntamos o que é isso.

Há alegrias! E vejo, no brincar das crianças, que no meio de tantas crises do capitalismo, as pessoas se reinventam. Um crasch no consumo. E uma disputa cada vez mais acirrada pelos altos salários (políticos, gerenciais etc.), enquanto a guerra se expande por todos os cantos e lugares. E vem o medo: do desemprego, de não pagar escola dos filhos, de não poder isso ou aquilo... Quando tudo é tão impermanente, os valores do mercado querem nos converter para um mundo de permanência. E como isso é impossível, compra-se mais e mais.

Os carros passam na rua numa velocidade que difere muito dos veículos das décadas passadas. São máquinas que entram com um poder de saltar sobre a terra, literalmente falando. Um fusquinha, lembrou-me uma amigo outro dia, fazia tremendo esforço para se deslocar. Agora não, as máquinas são de uma tecnologia que só ainda não podem voar! Enquanto isso, as crianças brincam, correm de um lado para o outro e nós vigiamos, pois a entrada de um carro na rua é a tomada veloz de um animal metálico, com vontade quase-própria.

Lembro-me que num dia desses, quando brincávamos na rua, um homem catava latinhas e colocava-as num saco que levava às costas. Três tempos-velocidades: as crianças, as máquinas e o homem-coletor de restos industriais.

Como se disse: eis o deserto!

Cada um corre a lentidão-velocidade de seu plano: a poética do brincar, a sobrevivência do homem sozinho a colher latinhas, as máquinas que cortam nossas ruas com convergências rápidas. O fluxo econômico está contido nessa duração que partilhamos por uns momentos: a produção em série de mercadorias possantes para públicos consumidores sofisticados e a miséria no contra-fluxo, recolhendo pedaços que ficam no caminho para a reciclagem industrial, os meninos e seus tempos infinitos.

Falamos das macro e micropolíticas. Meu amigo me lembra que a macropolítica é quem governa as localidades e impõem as lógicas próprias: o compartilhamento da vida sempre adiado, a meta em algo que transcende a realidade concreta.

Para lembrar Maturana, o brincar está no contra-fluxo da instrumentalização da vida: uma arte pobre, um tempo dos pobres (Milton Santos), mas dotado de uma riqueza e poder intangíveis: de reencantamento do concreto (Varela) e de fornecer as provisões do porvir.

Por isso as micropolíticas são lúdicas. Não ficam lamentando o fracasso do júbilo sobre a terra e nem aderem ao triunfalismo do poder sobre os recursos e sobre os homens. Não são sentimentais. E tampouco vivem de esperança, essa paixão triste, como diz Espinoza.

Mas há espaço para o lúdico? A capacidade humana de invenção é infinita: ardil da vida frente ao que lhe rouba, constantemente, suas potências.

De fato, os recursos são administrados pela macropolítica. Mas o estrago é tão grande que a todo momento convoca-se o biopoder, a capacidade de criação, o espaço de invenção, o tempo compartilhado.

Então, é uma volta para o brincar como um modo de habitar o mundo. Novos valores, novas atitudes diante da crise econômica. Retomemos o contato com as coisas em suas singularidades, com o chão que pisamos, o tempo-espaço de uma duração.

Há quem diga que nunca o capitalismo - essa máquina abstrata de desterritorialização e reterritorialização - deixou de fabricar seus próprios colapsos (e recuperações mais alucinadas à frente). Nossa arma só pode ser a atenção no momento único que não se repete: uma vida.

Vamos inventar (sempre) uma política de criação e liberdade. A crise pode nos indicar esse caminho. Depende de onde vamos colocar o foco: se na raiva da disputa ou se na malícia e alegria que o lúdico proporciona.

Por isso, o melhor não é o assunto (a crise), mas o que vivemos naquele momento: as crianças brincando, os carros passando e a gente conversando (uma outra brincadeira).

O melhor lugar do mundo é aqui e agora (Gilberto Gil - veja a letra).

segunda-feira, 2 de março de 2009

Máquinas de brincar no Quintarola

Já ouviu falar em máquinas para brincar, no centro de uma  grande cidade? Se não ouviu, passe lá no blog Quintarola. Se já ouviu, confira.

Depois você me conta.


terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Um educador: José Pacheco

O Instituto Libertas de Educação e Cultura, de Belo Horizonte, convidou o educador da Escola da Ponte (Portugal), José Pacheco, para fazer parte de sua equipe. Zé da Ponte, como ele mesmo se autodenomina, fez uma conferência aberta à comunidade escolar, no início de fevereiro. Há muito tempo eu não ouvia alguém falar de educação com tanta leveza, humor, inteligência e abertura criativa para o novo.

José Pacheco realizou, diante da audiência, um exercício de escuta qualificada e atenção plena. Contou rapidamente o que significou para a educação o projeto Escola da Ponte. Zé está criando novas pontes, como é o caso de sua parceria com o Instituto Libertas, passando a residir em Belo Horizonte por um bom tempo. Bons ventos. Aliás, quando a utopia parece sumir no horizonte, deparar-se com um educador como Zé da Ponte traz ânimo e vontade de criar, de inventar e continuar em frente.

O que ele nos disse pode ser resumido rapidamente no seguinte: de como um grupo de educadores realiza, numa das escolas mais públicas mais pobres de Portugal, após o desabamento da ditadura Salazarista pela Revolução dos Cravos, um dos mais inovadores projetos de educação de nossos tempos. As crianças viviam em extrema pobreza, muitas envolvidas na prostituição infantil, outras muito violentas, sem cuidados mínimos, cheirando a vinho e com piolhos. O ensino era tradicional, ou seja, baseado nas cartilhas de alfabetização etc. Esse quadro transformou-se num outro: essas crianças logo se tornaram as melhores, nos indicadores de aproveitamento escolar, em todo o país!

Relatar toda a conferência de José Pacheco é impossível. Mas posso dizer um pouco mais: de como ele valoriza a formação do ser humano em primeiro lugar - ou seja, de que podemos nos tornar melhores e não ficarmos reduzido somente ao aspecto cognitivo de desenvolvimento. Este não é negligenciado, antes pelo contrário, assume um aspecto mais amplo, justamente o da formação humana. A questão da autonomia, da valorização das assembléias democráticas, da prática e do exercício da transformação.

Mas tudo isso é para dizer o seguinte: num momento, um professor perguntou ao Zé da Ponte qual seria o papel da educação física na educação que ele acredita e exercita. E José Pacheco responde que se um projeto obtém sucesso é porque ele tem a arte como centralidade. E disse, então, da importância da educação do movimento.

Por essa e outras falas, saí feliz. Aquilo foi um belo encontro. Que o José Pacheco possa fazer novas pontes para o futuro.

E para fechar, o trecho de um artigo do professor José Pacheco, que muito me tocou por falar da solidão produzida pela escolas, algo que foi um traço marcante da minha infância:
"Todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singulares, mas também espaços de múltiplas interacções, comunicação, cooperação, partilha... Sabemos que não é bem assim. As escolas são, quase sempre, espaços de solidão. O trabalho dos professores é um trabalho feito de solidão e a solidão dos professores é da mesma natureza da solidão dos alunos – professores e alunos estão sozinhos nas escolas."

Mais referências:

Artigos do Professor José Pacheco em A Página da Educação -
A Casa de Rubem Alves -

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O brincar e a educação infantil II




As férias vão se encerrando e começam as preocupações de todos os pais: onde matricular crianças na faixa de até seis anos de idade.

Volto-me sobre as questões apresentadas numa postagem primeira sobre as relações entre o brincar e a educação infantil: o significado dos tempos e dos espaços para o brincar, o currículo escolar, a nossa visão sobre o desenvolvimento das crianças etc.

Desta vez, quero falar das escolas-quintal: estas são as fontes de uma nova visão sobre a função do brincar na educação infantil. Sentimento que compartilho com o blog Quintarola. Aliás, ficamos os dois blogs de falar escrever sobre esses espaços de vivência e aprendizagem livre.

Penso primeiro na questão da importância da escola-quintal para a educação infantil, tendo em vista a retomada da cultura lúdica da infância. Sobre que fundo aparecem tais espaços?


As crianças estão cada vez mais desprovidas de seu mundo de cultura. Quando falamos de cultura do brincar, referenciamo-nos primordialmente na cultura da criança. E criança tem cultura?Já discutimos isso em outras postagens (por exemplo, numa que abordo a questão da produção cultural para crianças).E relembro, aqui, a importância do pequeno grande livro de Clarice Cohn sobre o tema. O fato é que nossas sociedades industriais e consumistas desvalorizam essa cultura - e a escola tem participado disso. Como? Quando procura responder à necessidade de educar nossas crianças no paradigma da produtividade econômica (e do saber). Ou quando somente reduzem o brincar a ser um mero veículo para outros conhecimentos.

Porém, mais do que desvalorizar a cultura da criança, as atuais sociedades a descobriram como nova fonte de lucro. Até então as crianças eram deixadas nos livres, desde que não atrapalhassem a vida dos adultos. Quanto estivessem na idade certa, deveriam ir para a escola e adeus mundo de encantos e invenções! Por isso os quintais: lá, longe dos adultos, habitávamos o mundo!

A infância passou a ser parte do processo econômico: deixa ser produtora de cultura para ser somente uma consumidora. E a escola tem sido uma extensão natural desse paradigma. Basta ver os espaços internos das instituições: brinquedos industrializados aos montes, espaços cognitivos já delimitados e pré-formatados, falta de investimento nas vias da sensibilidade.

Dizem alguns educadores que a escola é lugar de aprendizagem e não de brincadeira. Não aprenderam - ou não podem aprender - que o brincar contém os elementos informais das estruturas essenciais do aprendizado - que apenas necessitam ser conduzidas e, mais tarde, formalizadas pela educação. Isso o que eu aprendi com Cláudia Souza, quando dirigia com Adriana di Mambro o Clic- Centro Lúdico de Interação e Cultura, em Belo Horizonte.

Os valores vigentes e circulantes fazem as cabeças de pais, educadores e mais ainda das autoridades responsáveis pela educação. Entre estes valores, a visão de que precisamos ocupar mais e mais a primeira infância com o peso da cognição. Quem sabe o meu filho sai de lá um "gênio", pronto para os "vestibulares" das "melhores" escolas de ensino fundamental?

Esquecem que existem os saberes pré-reflexivos, imanentes, abertos, em estado de potência, conectivos... Esquecem que nossa humanidade depende desses saberes de corpo, de sensibilidade, de apropriação do aqui e agora sem as coerções instrumentais (da natureza externa, da natureza interna e do outro).

As escolas-quintal. Meu filho mais novo estudou no Clic, uma escola-quintal. O que difere das outras? Em primeiro lugar, em não haver pressa em alfabetizar. Depois, na abertura para as vivências exploratórias e sensíveis, tendo a arte e o lúdico como trabalho essencial.

No Clic meu filho pôde curtir momentos para massagem, culinária, brincadeiras circenses etc. Ele permanecia na escola o dia inteiro e ainda sentia falta quando havia feriados e férias!

Este é um assunto polêmico. Um artista e amigo, parceiro da cultura do brincar, não quer que seu filho mais novo vá logo para a escola. Ele passa as manhãs com o garoto, e a companheira a parte da tarde. Ele faz questão de acompanhar e encorajar as aventuras do menino, desde o balanço no colo ao momento de pisar o chão. Mas não dá para generalizar: ele é um educador e não abre mão do tempo bem vivido. Quantos de nós podem se dar a esse privilégio? As escolas-quintal são a expansão dessa idéia: um adulto seguindo os passos da criança, deixando-a livre para experimentar o mundo, configurando seus tempos e espaços, oferecendo novos estímulos e desafios.

Uma das experiências mais radicais de escola-quintal é a Casa Redonda, criada por Maria Amélia Pereira, em São Paulo. Lá, são os adultos que seguem as crianças e não o contrário.

Uma escola-quintal é um espaço de invenção feito, em primeira mão, para as crianças pequenas e, em alguns casos, para as crianças maiores, também brincarem. Porém, há escolas que não se propõem a ser uma escola-quintal, mas que vão por esses caminhos, como o de evitar a carga cognitiva na primeira infância, sendo que, além disso, se responsabilizam pela passagem não apressada para a alfabetização e para as outras fases, como o ensino médio e fundamental. Um exemplo é o Instituto Libertas de Arte e Cultura de Belo Horizonte. Voltaremos um dia a esses espaços e o caráter lúdico-artístico-científico-cultural que assumem.

Para as crianças que ainda não se alfabetizaram, a escola-quintal, seja um modelo mais dirigido ou outro mais aberto, é o que traz para a infância o que ela está perdendo: o mundo de cultura produzido nas interações com o meio físico e social. É um espaço para os pais perderem o medo (de não verem suas crianças alfabetizadas aos cinco anos de idade) e as crianças conquistarem a coragem: da aventura humana.

Numa a sociedade em que o mundo de cultura da infância se vê cada vez mais encolhido e as crianças devem viver confinadas (o que passa a ser uma proteção e possibilidade de desenvolvimento), cabe criar e incentivar instituições abertas, que refaçam o caminho: de volta para a sensibilidade, para o aqui-e-agora de uma vida compartilhada.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Se a criança pequena faz teatro

A pergunta: a criança pequena faz teatro? Já abordei a questão em outra postagem, com o mesmo título da pergunta. O tema é recorrente. Desta vez, discuto novos aspectos, sem deixar de retomar o traçado essencial: a virada em direção ao brincar.

A criança brinca de teatro? Ela apropria-se dos códigos da cultura nas suas brincadeiras. O brincar não é uma ilha isolada, mesmo que seja a emergência de um espaço de autonomia em relação à dominação adulta. Nesse caso, a criança pode manipular os signos do teatro. Mas isso ao seu modo, ao seu jeito. Separemos tal apropriação de toda noção de "teatro" a que estamos acostumados. Obviamente que estamos nos referindo à criança pequena, para a qual o mundo concreto é encantamento puro. Então, a criança ao mesmo tempo brinca e não brinca de teatro.

Evitemos de cair na armadilha de querer reduzir os trajetos e linhas expressivas do brincar infantil às expressões codificadas das artes e da cultura. O que muitos chamam de brincadeira dramática é uma força de expressão. E, nesse caso, já não nos encontramos com a figura da manipulação de um signo muito difundido da cultura que é o teatro: o palquinho, a platéia etc. Filtramos, em meio a um mundo de percepções, jogos, invenções e cartografias de corpo, imagem e sons, aquilo que nos interessa. Uma operação que procura deduzir do brincar livre e espontâneo as formas codificadas da arte em seus desenvolvimentos históricos e territoriais. Esse tem sido um caminho trilhado por muitos projetos de Teatro na Escola. Não caminhamos por aí.

Antes de querer ensinar teatro às crianças, devemos criar meios e condições para a expressão do brincar gestual, corporal, energético, imagético e sonoro. Mas vamos, lá: de que teatro estamos falando?

Há toda uma construção teórica baseada no teatro dramático, que opera a seguinte divisão: a) o faz-de-conta seria um jogo dramático e b) o teatro propriamente dito seria um jogo teatral. Ingrid Dormien Koudela, a partir principalmente de seus estudos sobre Viola Spolin, faz essa análise.

O que está concepção trabalha é a noção de comunicação teatral. No jogo dramático, no faz-de-conta, predominaria uma noção de teatro centrada no ator como o eixo comunicante do evento cênico ou da performance (no sentido amplo). No caso, a criança não comunicaria o símbolo, ou seja, não poderia estabelecer uma relação comunicante com a audiência. De fato, no jogo dramático, não teríamos a divisão palco/platéia. Lembremos, aqui, o trabalho pioneiro de Peter Slade, que defendeu a autonomia do jogo dramático infantil.

Por que a criança não comunica o símbolo? Ingrid faz referência justamente à Jean Piaget e suas distinções entre as fases de desenvolvimento da inteligência da criança: sensório-motor, simbólico e operacional. Saltemos diretamente para a questão: o símbolo, para Piaget, teria por características ser motivado, intuitivo, auto-centrado etc. Já o sígno, este sim, seria não-motivado, objetivo e, portanto, passível de comunicação. Obviamente que existiriam transições sutis entre um e outro.

Tal argumentação nem estaria certa nem errada. Não tratamos mais do verdadeiro e do falso, lembrando Deleuze, mas sim do que funciona ou não funciona. Trata-se de um regime de signos, um regime significante. Nossa análise, que passa pelo brincar e suas linhas de errância, produzem outros mapas.

Mas a análise é também funcional para entender que o teatro dramático, com sua carga de significação, tendo o ator por eixo comunicante, não interessa à criança.

A construção de um personagem, no âmbito de uma dramaturgia, com seu desenvolvimento por meio do conflito intersubjetivo, com o desenho próprio de uma subjetividade em expansão e simultâneamene debatendo-se com os outros e com o mundo, é algo de uma composição sofisticada, que exige maturidade etc. No mínimo, seguindo Jean Piaget, que possa comunicar o símbolo, ou seja, entrar num jogo comunicante com a audiência, que não é nem totalmente objetivo e nem totalmente subjetivo - este seria o jogo teatral.

As crianças, quando brincam, exploram as forças sensíveis dos trajetos corporais e dos mapeamentos concreto-imaginários. Seria uma tarefa pesada, para não dizer um pouco triste, exigir que crianças pequenas representem teatralmente, segundo a concepção de teatro que toma o ator e seu trabalho interpretativo d papéis e de construção de personagens como eixo comunicante - ou significante. Isso porque ela estaria, seguindo o raciocínio via Piaget, sendo forçada a deixar prematuramente o mundo do faz-de-conta (do jogo dramático, que não incluiria a audiência ou platéia) para um jogo em que a essência está na relação palco/platéia, que seria o jogo teatral. Para as linhas de força, como pensaria um teatro energético, ao contrário, a criança estaria sendo despotencializada. Estaríamos diminuindo suas potências de agir para corresponder a um regime significante, ou mundo codificado.

Se, ao contrário, liberamos a expressão da criança nas potências do brincar exploratório e sensível, poderíamos configurar um teatro outro. Poderia haver audiência? Talvez... O mais importante é que se trataria de um espaço e tempo compartilhados. E nisso, já estaríamos nas trilhas de um teatro pós-dramático e performativo.

Antes de tudo a criança brinca. Como brinca o boi das festividades do nordeste do Brasil, do congado de Minas, como brinca o brincante.

Teríamos que estudar outras fontes: das pesquisas de vanguarda às pesquisas de folguedos, de apropriações circenses etc.

A questão concerne na verdade à vida sensível. O que faz convergir arte e cultura do brincar não é a aplicação de um a outro ou a correspondência entre dois termos, mas sim o fluxo material e sensível (Deleuze e Guattari, Mil Platôs) que ambas perseguem. Não um denominador comum, nem uma identidade. Mas a pura sensibilidade experimentando-se.

Um teatro performativo e pós-dramático pode, ao contrário dos teatros dramáticos, trazer elementos para o arte-educador, de tal modo que este aprenda a ver o brincar como exploração sensível, como linhas de errância. Se você observa crianças brincando, você se depara com cenas rituais. Não que elas remetam a qualquer origem - e aqui vai nossa diferença em relação a muitas abordagens que enxergam matrizes primordiais em tudo. Tais cenas nos remetem antes ao poder configurador da criança quando brinca livre e espontâneamente. Se a encenação infantil lembra-nos rituais, é porque o homem se inventa performativamente - dialoga com o mundo sensível - quando brinca. Esse, certamente, é o teatro da criança pequena. E o melhor disso: ele é que renova o nosso fazer. O olhar de um adulto não deveria ser o de transformar em espetáculo. Mas antes de devolver ao espetáculo o poder da criação performática que busca sentido em si mesma, independentemente de qualquer idéia sobre comunicação.


Referência


Devolver à criança a encenação: outro modo de ver o teatro na escola por Luiz Carlos Garrocho

Nota: Juliana Saúde Barreto, atriz e arte-educadora foi quem me chamou a atenção para a questão: quando nos perguntamos se a criança pequena faz teatro, qual a idéia de teatro que temos em mente?


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Infância e memória

Uma existência se abre quando levo meu filho mais novo de volta para sua casa. Andar ao lado de uma criança é sempre uma coisa muito especial. Mas naquele dia foi outra coisa: eu não andava mais em direção à sua casa com o objetivo de levá-lo tão somente, mas adentrava um mundo.

Explico isso melhor. Nós adultos nos perdemos do mundo real. Da vida corpórea e do sentido que lhe é inerente. Estamos sempre num monólogo interior, ausentes de nosso entorno e dos fluxos de consciência.

Volta e meia uma paixão triste, para pensar agora com Espinosa, me toma. Medito: que seja, tudo flui. E assim caminhamos os dois, conversando, mas deixando que a paisagem se desdobre em pura duração.

Folhas secas no chão, o ar limpo depois da chuva, a calçada, o céu, as casas... E mais folhas que aparecem aqui e ali, tudo em movimento, puro cinema.

Mas é a leitura de Bergson e Deleuze que me permite compreender melhor, mediante o que ele chama de intuição, o que vem a ser esse tempo presente. O presente é sempre o que passa. É sempre passado. E os tempos coexistem. Antes do presente, do qual procura se esquivar como sucedâneo de momentos, um após o outro, Deleuze instala-se, via Bergson, na pura duração, que é fluxo contínuo e heterogêneo, na qual os tempos coexistem, um em cima do outro, por camadas, e não linearmente, sucessivamente.

A descoberta do menino sobre o presente como o passado imediato é maravilhosa. Ainda aos 5 anos, lembro-me de ele me surpreendendo ao dizer:

- Agora, já passou...

Isso é maravilhoso.

No entanto, o mecanismo sensório-motor de nossos hábitos e linguagem produz uma situação de espera do que virá. Aprisionados entre uma imagem-lembrança e uma expectativa, nos recusamos a habitar uma pura duração.

Andávamos, então, de volta para a casa do menino. E não havia tristeza, nem da parte dele, nem da minha. E nem qualquer expectativa - não havia pressa de chegar a lugar nenhum. Sabíamos para onde íamos, só isso. E o tempo era todo nosso.

Veio até mim os idos da minha meninice, numa noite de Natal, virando uma esquina do bairro da minha cidade do nordeste de Minas, com meus revólveres de cowboy na cintura. Aquele passado coexiste com o presente que ele foi, essa a grande lição de Bergson, segundo Deleuze.

Quando habitamos uma duração pura, há um sucessão puramente interna, heterogênea e contínua (Deleuze, in Bergsonismo).

Subimos as escadas ainda conversando, os dois, findo o dia, esquecidos de si.